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Paulo Nogueira Batista Jr

Economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS e diretor executivo no FMI pelo Brasil.

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Colapso das finanças públicas?

Com a economia debilitada, a tentativa de impor austeridade fiscal prematura derrubaria os níveis de atividade e de emprego e, pelos motivos acima indicados, impediria ou dificultaria muito a pretendida diminuição do déficit público

Paulo Guedes na corda bamba (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)
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Com a crise provocada pela pandemia, esperava-se deterioração marcada das contas públicas no Brasil. Mesmo assim, os números impressionam. Estima-se um déficit primário em 2020 de cerca de 12% do PIB para o setor público como um todo. Somando-se a isso a despesa líquida de juros das dívidas internas e externas, o déficit público total subirá para quase 17% do PIB. Em consequência, projeta-se uma dívida bruta do governo geral de 98% do PIB no final de 2020. São projeções do Ministério da Economia, recentemente divulgadas.

As causas dessa deterioração são conhecidas, em linhas gerais. A primeira delas é a recessão – o governo espera uma queda de 6,5% do PIB em 2020, implícita nas projeções para as contas públicas. A recessão, que favorece o ajustamento das contas externas correntes, tem efeito oposto sobre as contas públicas. Ela corrói a base sobre a qual incidem os tributos, diminuindo a arrecadação. Aumenta, também, certos tipos de gasto, notadamente com seguro-desemprego. Além disso, o Ministério da Economia foi obrigado, ainda que depois de hesitações e com problemas de implementação, a aumentar gastos para combater a pandemia – não só com saúde, mas com o apoio a firmas e trabalhadores que perderam receitas e renda. Também houve redução ou adiamento de tributos para dar algum fôlego a empresas atingidas pela crise. 

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O resultado foi a explosão do déficit público, em grande medida como contrapartida da acentuada contração dos gastos privados com consumo e investimento.

A incoerência como virtude 

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Ocorre-me lamentar, leitor, a situação em que ficaram economistas brasileiros, ditos ortodoxos, inclusive o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes. Em 2018 e 2019, era comum que se ouvisse desses economistas a afirmação peremptória de que o Estado brasileiro estava “falido”, necessitando de reformas “estruturais” urgentes e de amplo programa de privatização. 

Ora, ora, muitos desses mesmos analistas da conjuntura econômica estiveram entre os primeiros que, com a eclosão da crise sanitária, passaram a clamar ansiosamente para que esse mesmíssimo Estado viesse salvar a economia, ameaçada de cair numa depressão. Curiosamente, caberia agora ao Estado, segundo eles “quebrado”, promover rápida e substancial ampliação do gasto e diminuição de tributos.

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Como isso seria logicamente possível, ninguém se deu ao trabalho de explicar. Repare, leitor, que os arautos da falência do Estado brasileiro faziam as suas proclamações em 2018 e 2019, com ampla repercussão midiática, quando o déficit total, atualmente projetado em 17% do PIB, flutuava por volta de 6 a 7% do PIB. E a dívida bruta, que agora se aproxima de 100% do PIB, estava em torno de 75% do PIB. 

A verdade é que a turma da bufunfa e seus porta-vozes econômicos não têm, nunca tiveram, o menor respeito pela coerência. Diriam, como Oscar Wilde, que “a coerência é a virtude dos que não têm imaginação”. E contam com a ignorância do público e a ignorância (ou má fé?) dos jornalistas econômicos para propugnar, na cara dura, as teses econômicas mais extravagantes. 

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O que dirão agora? Que o Estado brasileiro está “hiper quebrado”, “definitivamente falido”, “inviabilizado até à alma”? 

Quais são os indicadores apropriados? Há risco de inflação?

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Para ir além dessa barafunda, é importante olhar os indicadores relevantes. Por exemplo, o conceito mais apropriado de dívida não é o de dívida bruta, tão enfatizado pela área econômica do governo, desde os tempos de Joaquim Levy, ministro da Fazenda de Dilma Rousseff. Para a maior parte dos propósitos, o foco deve ser no conceito de dívida líquida, que deduz do endividamento bruto os ativos do setor público, notadamente as reservas internacionais do país e o estoque de créditos do Tesouro contra o BNDES. A dívida líquida também vem crescendo, mas não ultrapassará 70% do PIB em 2020, segundo as projeções do governo. A diferença é apreciável. 

Não se deve perder de vista, além disso, que a dívida pública brasileira é preponderantemente interna. O grosso dos títulos está na mão de investidores domésticos, uma base normalmente mais estável. É pequena a percentagem da dívida em moeda estrangeira ou indexada à taxa de câmbio. Considerando as reservas internacionais e outros ativos externos, o setor público é, na verdade, credor líquido em moeda estrangeira. Em outras palavras, a sua dívida externa é negativa. Em maio último, a dívida líquida externa do setor público era negativa em nada menos que 15% do PIB.  

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Pode-se perguntar, de qualquer modo, se não há risco de que um déficit público tão elevado possa resultar em inflação. Não é o caso, no meu entender. Para que isso pudesse ocorrer, o déficit teria que resultar, em combinação com outros fatores, em excesso de demanda na economia. Estamos, evidentemente, muito longe disso. Com a profunda retração do consumo e do investimento do setor privado, o déficit público entra como fator compensatório, impedindo que a economia caia em depressão. Nesse contexto, o risco é mais de deflação do que de inflação. A inflação abaixo da meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional abriu, inclusive, espaço para que o Banco Central diminuísse as taxas de juro, aliviando a carga de juros da dívida interna pública.

Outro ponto relevante: quando se observa o déficit público, convém para certos propósitos (por exemplo, para avaliar a dimensão do impulso fiscal) ajustar as contas governamentais de modo a excluir efeitos cíclicos sobre a receita e a despesa. Não existem estimativas oficiais regulares para o déficit assim ajustado. Contudo, tendo em vista a profundidade da recessão em 2020, pode-se admitir tranquilamente que boa parte do déficit primário observado resulte, na verdade, do impacto adverso automático da recessão sobre as contas públicas. Uma reativação da economia traria melhora automática das contas públicas.

A situação fiscal é difícil e traz riscos cambiais

Ao fazer todas essas ressalvas, não quero insinuar que a situação financeira do governo é tranquila. De forma alguma. O déficit que deve ser financiado não é o déficit ajustado para excluir efeitos cíclicos, mas o déficit total. Um déficit total elevado gera ampliação correspondente do estoque da dívida pública lato sensu (inclusive passivo monetário). Se a desconfiança gera encurtamento da dívida, o resultado é a ampliação contínua de ativos líquidos denominados em moeda nacional (dívida pública mais base monetária) relativamente às reservas internacionais do país. Em outras palavras, aumenta o risco de um choque desestabilizador sobre a conta de capitais do balanço de pagamentos. 

Daí o absurdo da proposta, atribuída a Paulo Guedes e sua equipe, de vender reservas internacionais para abater a dívida pública bruta. A proposta deixaria inalterado o indicador mais relevante – a dívida líquida – e reduziria a segurança da economia, abrindo talvez caminho para uma crise de balanço de pagamentos. Genial.

Ajustamento autofágico versus ajustamento com crescimento

Outra proposta contraproducente seria, no pós-pandemia, tentar uma consolidação fiscal rápida por meio da diminuição de gastos ou do aumento da carga tributária. Seria o chamado ajustamento fiscal autofágico. Com a economia debilitada, a tentativa de impor austeridade fiscal prematura derrubaria os níveis de atividade e de emprego e, pelos motivos acima indicados, impediria ou dificultaria muito a pretendida diminuição do déficit público.

“O crescimento não é solução para tudo, mas sem ele não há solução para nada”, dizíamos nos idos da década de 1980, quando o Brasil lutava para escapar da recessão provocada pela crise da dívida externa. Voltamos a viver situação até certo ponto semelhante. A chave para superar as dificuldades fiscais está em buscar a retomada do crescimento econômico, lançando mão das políticas monetária e cambial, dos bancos públicos e da própria política fiscal para impulsionar a economia. As condições para fazê-lo estão dadas. Há capacidade ociosa na economia e o desemprego é elevado. Não há risco de inflação no horizonte. Não há ameaça do lado do balanço de pagamentos em conta corrente, mesmo ajustado para excluir efeitos cíclicos. Um eventual déficit em conta corrente, desde que modesto, não acarretaria riscos sérios e poderia ser financiado com investimentos diretos e outras entradas de capital. 

A retomada do crescimento favoreceria o ajustamento das contas públicas, facilitando diminuição progressiva do déficit primário. Com uma taxa de crescimento do PIB superior à taxa média de juros da dívida pública, o ajustamento gradual do componente primário permitiria estabilizar a razão dívida/PIB no médio prazo. 

Um pequeno problema, entretanto. Qualquer plano de crescimento econômico pressupõe a existência de um governo central, capaz de conceber, planejar e coordenar as ações. 

É exatamente o que nos falta.

Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista Carta Capital em 10 de julho de 2020.

O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Lançou no final do ano passado, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata.

E-mail: paulonbjr@hotmail.com

Twitter: @paulonbjr

Canal YouTube: youtube.nogueirabatista.com.br

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