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Tiago Basílio Donoso

Mestre em Teoria Literária pela Unicamp e autor do livro no prelo “Terras Nacionais e Terras Estrangeiras”, pela editora Kotter

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Como evitar uma nova idade da pedra

Há, grosso modo, duas escolhas no horizonte político da humanidade. Embora haja inúmeras preocupações, a encruzilhada pode ser definida entre: uma sociedade sacrificial e outra que supere o sacrifício

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Há, grosso modo, duas escolhas no horizonte político da humanidade. Embora haja inúmeras preocupações, a encruzilhada pode ser definida entre: uma sociedade sacrificial e outra que supere o sacrifício.

Esses caminhos nem sempre coincidem com a historicamente recente divisão política entre esquerda e direita. Hoje, porém, fica visível nos projetos que a divisão entre esses dois campos e a divisão entre uma sociedade em prol do sacrifício e outra que busque a redenção entraram em foco. Será nessa encruzilhada tantas vezes repetida pela história que se dará a nossa ação política imediata.

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Volto ao tema em breve, mas tenhamos em mente que o clamor social pela morte coletiva (não exatamente o estado suicidário a que se referiu recentemente o professor Vladimir Safatle), pelo sacrifício, é tão grande que já penetra todos os atores políticos. Veremos logo mais o que isso significa para os setores progressistas, mas, antes, um breve recuo.

Nas décadas de 1980 e 1990, a época sacra do fim da história, viram-se pelas televisões as cenas da fome na Etiópia. As imagens da carestia etíope correram o mundo e fincaram garras em nossa imaginação. O medo ancestral da fome, que nunca nos há de abandonar, também se banalizou, tornou-se piada de mau gosto, porém não porque não o levássemos a sério - e sim porque o levamos a sério intensamente. O horror daquelas cenas nos acompanha e é utilizado para que se auxilie hoje a ONG Médicos Sem Fronteira: crianças com o estupor e a incompreensão de fetos, barrigas inchadas - como se assim mostrassem mais claramente seu vazio - moscas palmilhando olhos, já irremediavelmente além da película de divindade que protege o humano, dentes com um quê de máscara. Toda nossa impotência diante de um mudo capitalista estava ali, visível, sendo que toda impotência quer esconder-se para chamar de “não quero” aquilo que na verdade “não posso”. A impotência hipócrita de se viver em um mundo capitalista nos humilhou, como se só então fosse visível, de repente. O neoliberalismo, esse colonialismo neo-sacrificial, nos humilharia ainda mais com as outras imagens dessa mesma época, em lugares diametralmente opostos.

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A outra cena se deu nas passarelas da alta-costura. Seguindo as pegadas da modelo Twiggy, que já na década de 1960 despontava com sua excêntrica magreza, o cume mais alto da moda passou a ser tomado por ossos e seus ângulos. A regra, e não a exceção, eram topmodels cada vez mais magras. Termos como bulimia e anorexia entraram no vocabulário comum, sendo a última incluída no DSMIII apenas em 1980. O jejum, procedimento religioso por excelência, agora servia a outro propósito, embora não totalmente alheio à esfera da religião. Mulheres, meninas, eram reduzidas a manequins para que a evidência se desse na mercadoria, não na mulher tornada mais bonita com seu auxílio. As expressões faciais eram macabras, cadavéricas - a morte, que intensifica o valor daquele que nos abandona, um instrumento de aumento de preço. O padrão de beleza de toda uma sociedade minguava a formas famélicas, que suscitavam um assombro quase piedoso. Um nó abjeto começava a ser dado no mundo neoliberal.

No ponto mais baixo do círculo social, a morte por desnutrição. No mais alto, entre iates e Yves Saint Laurent, mulheres sacrificadas como virgens vestais no altar de uma opulenta miséria. Como diria o desenho mais famoso da época, que considerava o povo-hiena indigno e despreparado para o exercício do poder e que reempossava o leão em seu legítimo trono: estava reencetado o círculo da vida. Os pecados de toda a sociedade se expiavam em um duplo sacrifício: dos pobres e das jovens, ambos escolhidos pelos dedos anônimos dos ricos.

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Não se deve subestimar o quanto somos arcaicos. Voltemos aos dias de hoje, quando o neoliberalismo se intensifica pela nova desregulamentação trazida pela internet. Não se passa uma semana sem que se peça aos mais pobres algum sacrifício.

Falhou-se em perceber que o uso metafórico da palavra “sacrifício” demanda cuidado. Sua força de gravidade é sua literalidade, acesa ainda em uma memória tão dolorosa que se recusa a passar. Quando se passa a utilizá-la de modo relativizado, conotativo, em breve se verá - como no filme Bacurau - a volta do sacrifício público.

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Mas, por ora, nossas sociedades ocidentais se conformam com austeridade, reformas tributárias, reformas de sistemas previdenciários, com o discurso emprego versus direitos e, principalmente, meritocracia. Habituados que estamos à palavra, muitas vezes não nos ocorre seu real significado: o sacrifício de todos para o sucesso de um - que também se sacrificou para “chegar lá” e por isso, apenas por isso, está justificado. Se apenas, então quer dizer que a paixão obrigatória é o sacrifício absoluto: quem não “chegou lá” está sendo sacrificado porque não se sacrificou o bastante. Não se sacrificou do modo como deveria - e o modo foi socialmente determinado.

Falei de países ocidentais. É no mínimo perturbador que o cristianismo, cujo líder supremo queria anular todo e qualquer sacrifício ao ponto de sacrificar-se enquanto Deus, tenha chegado à conclusão histórica de que todo e cada um e toda a natureza e os pedaços tangentes do universo e o brilho estelar devam ter o pescoço cortado em um altar miserável. O sacrifício, recalcado, volta absoluto.

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Onde estão direita e esquerda nesse terrível esquema que, mesmo ateu ou laico, não deixa de ser religioso? A direita se converte aos poucos em extrema-direita. A direita digna do nome é somente aquele resquício do que se contenta em saquear o público e manter a ordem à paulada. Mas as urnas a têm afastado, e só seu velho poder hierárquico, midiático, cinematográfico e institucional lhe dá sobrevida. Porque se a direita pensar em fazer uma sociedade em seu todo mais próspera, então já não é ela mesma: a direita não tem em seu horizonte o bem comum (exceto pela ideia de que uma sociedade onde cada um tem seu lugar, sendo o deles o do privilégio, é a melhor para todos). No máximo, buscam preservar o status quo - imaginando que rompê-lo por bons motivos traria agruras piores do que aquelas que já temos - e certas agradáveis complexidades econômico-fiscais, com as quais mantém girando a roda do sacrifício. A paciência social com essa direita pode mudar, mas tudo indica que já está se esgotando.A extrema-direita, na qual se converte por lucro e demagogia, é explicitamente sacrificial. Ela nomeia inimigos e não existe sem o ataque. Sua coesão se dá no próprio ato da morte ou de sua promessa. George Bush disse que bombardearia o Paquistão de volta à idade da pedra. O efeito, contudo, foi contrário. São os Estados Unidos que a cada dia que passa tiram um pouco mais da escuridão sua máscara, sua brutalidade paleolítica e high tech. E com as novas armas das redes sociais - advindas da internet, uma invenção do Pentágono - espalham pelo mundo essa aspiração sentimental de não deixar pedra sobre pedra.

E a esquerda? Quando se fala por tanto tempo em sacrifício, como no Tratado de Versalhes ou nas políticas do Banco Mundial, não é possível que se deixe de ter na boca o gosto de sangue. Há em nossa sociedade uma monstruosa demanda por holocausto. Fingir que não existe é ser tragado por ela.

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No caso brasileiro, como em muitos países latinoamericanos de tanta morte e tanta luta suprimida, estamos um passo adiante. Sim, temos uma vantagem histórica. Temos um partido que nunca se deixou seduzir pela visão sacrificial da meritocracia, que se passa por luta das minorias. Há partidos aqui, como de resto em todo o mundo, compostos em sua maioria por uma classe média culpada que aceita com naturalidade essa visão em que se embute o sacrifício - afinal, aí está sua função, atenuar uma culpa coletiva. Mas o PT, que de fato abandonou as bases, não caiu contudo nessa armadilha: luta realmente por uma sociedade coletivamente mais próspera, e por isso tem como fundamental a luta contra qualquer opressão, tanto na micro quanto na macro e geopolítica. Não tendo sido seduzido pela esquerda culturalista - para a infelicidade do banqueiro André Esteves - manteve os pés fincados na luta contra o sacrifício (o identitarismo de mercado - e não o real, o político, atrelado à luta de classes - é a transformação da luta contra em luta pelo sacrifício). Essa a nossa vantagem histórica, fruto de nosso atraso que, não nos dando o mínimo, tampouco nos deu a oportunidade de fragmentarmos a luta.

Mas, e o gosto de sangue? Lembremos que o PT e Lula são chamados de “conciliadores”. A ideia de ambos é a de uma sociedade capaz de pensar em sua redenção - pelo trabalho, daí seu nome - e sem sacrifício: nem de pobres, nem de empreiteiros; nem de motoboy, de faxineira ou de banqueiro, ou latifundiário. Mas é esse caráter que parte da sociedade não deseja. Clama-se por uma vítima.

A escolha da esquerda, portanto, é: tentar perseverar na aniquilação gradual do pensamento sacrificial, tarefa humanitária de longa duração e com muitos reveses; ou dirigir o ódio aos que hoje dirigem a máquina de sacrifício, “cortando na carne” de banqueiros e de ruralistas. Claro, não se trata de sacrifício algo tão banal quanto a taxação de grandes fortunas, ou a regulação da mídia. Mas assim serão apresentadas.

Essas são as duas tarefas: converter um ódio sacrificial em uma noção de justiça para o bem comum. Não será possível sem a taxação de super-ricos e algum controle social sobre as mídias, novas e velhas. E tal atitude é tão delicada, tão complexa - dado o clamor regressivo do mundo sob o neoliberalismo - que a suavização de que o PT e Lula são capazes precisará ser perfeitamente articulada. Alivia a percepção de que, se algo é difícil, então tem chances de mexer nas estruturas. Porque o ódio aos “poderosos” pode ser convertido em “protocolos dos sábios de Sião”, ou mesmo lavajatismo. Se estimularmos o ódio, se abandonarmos nossa busca histórica pela superação do sacrifício - de um ou de todos - então entraremos em uma espiral bem ao gosto do capital. Se estimularmos o ódio, quem tem o dinheiro e as mídias o usará contra nós. E seremos considerados inimigos de nossa própria classe, e os ricos os melhores amigos dos batalhadores; se a essa altura não trabalharmos com sensibilidade e inteligência, considerando inegociável o inegociável, justo o justo, seremos implodidos, bit a bit, de volta à idade da pedra.

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