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José Álvaro de Lima Cardoso

Economista

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Como o Sistema da Dívida Pública condiciona o desenvolvimento nacional

Mecanismo transfere recursos públicos ao setor financeiro e compromete investimentos sociais, contrariando princípios constitucionais e a chamada Regra de Ouro

Moedas de reais (Foto: Reuters/Bruno Domingos)

Em termos mais gerais, a dívida pública é o valor que o governo federal, estadual ou municipal toma emprestado para cobrir gastos quando as receitas não são suficientes para pagar as despesas ou realizar investimentos estruturantes. Esse endividamento pode ser interno (com credores nacionais, como bancos, fundos de pensão, investidores) ou externo (com organismos internacionais, bancos estrangeiros etc.). Normalmente, esse endividamento funciona por meio da emissão de títulos públicos, embora o Estado disponha de várias outras maneiras de captar recursos, como a obtenção de empréstimos e outras operações financeiras.

Na realidade brasileira, no entanto, prevalece o chamado "Sistema da Dívida", por meio do qual a dívida pública deixa de ser um simples instrumento de financiamento do Estado e torna-se um mecanismo de transferência permanente de recursos públicos para o setor financeiro, sem contrapartida real para a sociedade em investimentos ou benefícios sociais. A organização que avançou bastante no desenvolvimento do conceito de “Sistema da Dívida” foi a Auditoria Cidadã da Dívida (ACD), uma associação sem fins lucrativos que tem como objetivo principal promover a transparência, fiscalização e debate sobre o endividamento público do Brasil.

Pela lógica desse Sistema, o endividamento é gerado sem que ocorra um investimento ou prestação de serviço correspondente. Cria-se uma dívida, emitem-se títulos públicos e não há nenhum investimento que justifique a geração da dívida. Com a iniciativa, os sucessivos governos violam a Constituição Federal, que proíbe a emissão de títulos públicos para pagar apenas juros. É o princípio constitucional conhecido como a "Regra de Ouro" das finanças públicas, previsto no artigo 167, inciso III, da Constituição Federal do Brasil. Diz o artigo 167, inciso III: “São vedados: (...) III - a realização de operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa e aprovadas pelo Poder Legislativo por maioria absoluta”.

Pela Regra de Ouro, o Estado só pode fazer dívida para investir ou quitar dívidas antigas (de forma vantajosa), e nunca para arcar com despesas correntes (como salários, contas do governo, benefícios previdenciários etc.). O princípio da regra é impedir que os governos deixem uma “herança maldita”, na forma de dívidas, para as futuras gerações. Caso precise ultrapassar esse limite, em uma situação excepcional, como uma calamidade pública, o governo pode pedir uma autorização especial ao Congresso Nacional, aprovada por maioria absoluta, mediante proposição específica indicando a finalidade dos recursos.

Em outras palavras, o governo não pode emitir títulos públicos (ou realizar outras operações de crédito) para financiar despesas correntes, como pagamento de juros, salários e custeio da máquina pública. Essa diretriz visa, obviamente, evitar que o Estado entre em um ciclo vicioso de endividamento, no qual toma novos empréstimos apenas para pagar despesas correntes, gerando desequilíbrio fiscal e acumulando dívidas sem retorno na formação de patrimônio público. Fica claro aqui que sustentar o Sistema da Dívida significa transgredir permanentemente a Constituição Federal. No entanto, como o funcionamento do sistema interessa ao capital de uma forma geral, os poucos que denunciam as violações constitucionais são olimpicamente ignorados ou “cancelados”.

Outra característica do Sistema da Dívida é a destinação de uma parte muito grande do orçamento público ao pagamento de juros, amortizações e encargos da dívida, em detrimento dos investimentos em áreas essenciais, como saúde, educação e infraestrutura. Quando se estuda com profundidade e isenção os dados da dívida pública brasileira, constata-se que, na realidade, o “problema fiscal” do Brasil é o problema da dívida pública, e não os gastos sociais ou os investimentos. Para tanto, basta analisar os dados de resultado primário do governo federal, ou seja, a diferença entre as receitas e as despesas do setor público, sem considerar os gastos com o pagamento de juros da dívida pública. Em 2024, o resultado primário do governo federal apresentou déficit de R$ 11,032 bilhões, equivalente a 0,09% do PIB — valor insignificante e dentro da meta prevista. Em compensação, no mesmo ano, os gastos com os juros da dívida pública atingiram R$ 950,4 bilhões. Essa dinâmica se repete há décadas.

O Sistema da Dívida possui mecanismos financeiros complexos, justamente para dissimular os impactos dos gastos com a dívida, que são inaceitáveis, considerando a realidade brasileira. Esses mecanismos incluem operações financeiras sofisticadas, transformação de dívidas privadas em públicas e taxas de juros elevadas, que, beneficiando diretamente o sistema financeiro, são justificadas “tecnicamente” em qualquer conjuntura, faça chuva ou faça sol. Por exemplo, uma das alegadas e recorrentes razões para o aumento de juros é a “instabilidade política” nos mercados mundiais. Mas, na conjuntura internacional que se apresenta, é possível esperar tranquilidade nos mercados internacionais? Como se sabe, alguns desses mercados, inclusive, usam a instabilidade para gerar lucros para os investidores, como fizeram no caso recente do anúncio de Donald Trump sobre a elevação das tarifas para os produtos brasileiros.

No período que vai de 2004 até hoje, o Brasil esteve quase sempre entre os três países com as maiores taxas reais de juros do planeta. Acompanhado, no ranking, de outras nações subdesenvolvidas — vítimas também de um sistema da dívida ou acometidas por crises muito graves — como: Turquia, Rússia, Argentina, África do Sul, Indonésia, México, Colômbia, Índia e Filipinas. Em parcela significativa do período apontado, o Brasil oscilou entre 1º e 4º lugar no mundo. Em maio último, o ranking era o seguinte:

  1. Turquia (10,47%)
  2. Rússia (9,17%)
  3. Brasil (8,65%)
  4. África do Sul (6,61%)
  5. Colômbia (4,68%)
  6. México (4,43%)
  7. Indonésia (4,15%)
  8. Argentina (3,92%)
  9. Índia (2,66%)
  10. Filipinas (2,34%)

Na lista acima, entre os dois países que têm taxas reais mais elevadas que a do Brasil — Turquia e Rússia — o primeiro tem inflação anual de 35,51% e o segundo, de 10,06%, em ambos os casos acumulados bem superiores aos apresentados pela economia brasileira. Chama a atenção, também, na lista, o fato de que todos os países são subdesenvolvidos, ou “em desenvolvimento” — um reflexo de estruturas financeiras e relações históricas que perpetuam a vulnerabilidade econômica dessas nações.

Um dos fatores para o fenômeno é a relação entre nível de juros e percepção de risco. Países subdesenvolvidos são associados a maior risco econômico e político por parte dos investidores internacionais. Para atrair capital externo e evitar a fuga de investimentos, especialmente em cenários nos quais países imperialistas elevam suas taxas de juros, os países atrasados são forçados a oferecer rendimentos mais altos em seus títulos de dívida pública, operando aí a engrenagem do sistema da dívida. Essa necessidade de oferecer juros elevados aumenta o custo do endividamento, onerando os orçamentos públicos e desviando recursos que poderiam ser investidos em áreas fundamentais.

Os países atrasados, na falta de recursos financeiros internos para financiar suas atividades governamentais e déficits fiscais, tornam-se altamente dependentes de empréstimos externos, seja de instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, seja de investidores privados estrangeiros. Essa dependência cria um ciclo vicioso de endividamento, no qual novos empréstimos são necessários para pagar dívidas anteriores, agravando a situação financeira. Uma ilustração completa desses problemas vê-se no recente acordo realizado entre a Argentina e o FMI, que prevê uma nova linha de crédito estendida de 48 meses, no valor de US$ 20 bilhões. O acordo impôs uma série de condicionalidades, como compromissos com a desregulamentação do setor de energia e metas de acumulação de reservas cambiais (que, aliás, o governo argentino não está conseguindo cumprir).

O Sistema da Dívida está por trás de todas as atrocidades cometidas contra a previdência social, das privatizações, assim como dos cortes orçamentários em geral. Toda a construção analítica que fazem o “mercado” e a grande mídia é de que o déficit nominal seria decorrência dos gastos sociais, como Bolsa Família, previdência, saúde e educação. Nessa interpretação, os juros altos e a dívida seriam uma consequência do “descontrole fiscal” e não sua causa. Como o governo gastaria demais com “medidas populistas”, o Banco Central seria forçado a manter os juros nas alturas, crescendo assim a dívida pública em relação ao PIB (hoje em 78,6%).

Uma das características centrais do Sistema da Dívida é a falta de transparência. Não há clareza sobre a origem e a destinação dos recursos captados por meio dos títulos emitidos. Por exemplo, como denuncia há anos a ACD, o Banco Central remunera a sobra de caixa dos bancos, o que se constitui em um dos mecanismos que geram dívida pública. As sobras de caixa são aqueles depósitos que os bancos recebem da clientela (contas correntes, investimentos etc.), os quais, muitas vezes, nem todo ele é emprestado. O excedente é chamado de sobra de caixa.

Historicamente, o Banco Central utilizava as operações compromissadas para controlar essa liquidez. Nessa operação, o BCB vende títulos públicos aos bancos, com acordo de recomprá-los mais tarde, pagando juros. Esse sistema acaba aumentando a dívida pública, já que usa títulos do Tesouro. A partir da Lei 14.185/2021, o BCB foi autorizado a receber depósitos voluntários dos bancos, remunerando-os com uma taxa de juros, normalmente alinhada à Selic. Diferentemente das operações compromissadas, esses depósitos não são contabilizados diretamente na dívida pública. A ACD chama a remuneração das sobras de caixa de “Bolsa banqueiro”, na medida em que o sistema garante lucro fácil aos bancos, sobre um dinheiro que está parado. Algumas estimativas apontam que essa política custou cerca de R$ 1 trilhão aos cofres públicos nos últimos 10 anos.

Esse sistema, que recompensa os bancos por não emprestarem, claramente reduz o incentivo ao crédito, com prejuízo aos investimentos. O pagamento de juros sobre as reservas — no caso do Brasil, em taxas muito elevadas — acaba funcionando como um “subsídio” indireto aos bancos (a chamada Bolsa banqueiro), permitindo lucros garantidos sem risco de empréstimo ou investimento. O Banco Central, ao pagar juros sobre reservas, além de favorecer os bancos com dinheiro público, diminui os valores que poderiam ser repassados ao Tesouro como senhoriagem, isto é, o lucro decorrente da emissão de moeda pública (aliás, a PEC 65/2023, que tramita no Congresso Nacional, prevê o não repasse pelo BCB dos lucros da senhoriagem ao Tesouro Nacional).

O Brasil não é o único país do mundo que adota esse sistema. Nos EUA, por exemplo, o IOER (Interest on Excess Reserves), ou Juros sobre Reservas Excedentes, foi adotado a partir de outubro de 2008, na brutal crise financeira que impactou o mundo todo. Pelo sistema, o Fed (banco central dos Estados Unidos) paga uma taxa de juros aos bancos comerciais sobre os fundos que estes mantêm no Banco Central, acima do mínimo exigido como reserva. São as chamadas “reservas excedentes”. O objetivo da medida é controlar a taxa de juros de curto prazo e gerenciar a liquidez no sistema financeiro. Ao pagar juros sobre o dinheiro extra depositado pelos bancos, o Fed cria um “piso” para a taxa dos fundos federais, na medida em que os bancos não teriam motivo para emprestar dinheiro a outros bancos por taxas menores do que a oferecida pelo próprio Fed. Com a crise de 2008, os volumes de reservas bancárias cresceram muito, tornando a política ainda mais relevante. As críticas ao sistema nos EUA são muito duras: desincentivo à concessão de crédito pelos bancos, “subsídio” ao sistema bancário, risco de inflação, custo ao contribuinte etc.

Apesar de a economia brasileira ser a nona do mundo, o país está na 84ª posição em IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), posição que recua para a 105ª quando se leva em conta a desigualdade social. Ademais, cerca de um quarto dos brasileiros precisa de auxílio financeiro mensal para não passar fome. Boa parte dessa disparidade entre a magnitude da riqueza produzida e as condições socioeconômicas da população brasileira pode ser explicada pelo funcionamento do Sistema da Dívida Pública.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.