Como vamos confrontar os semideuses de jaleco branco?
O Centro de Atenção Integrada à Saúde da Mulher, CAISM, foi idealizado no final da década de 1970 no Brasil. Precursor do Hospital da Mulher, o Centro teve desde seu nascimento o propósito de cuidar de especificidades da saúde da mulher, que envolvem fortemente as áreas de ginecologia e obstetrícia.
A necessidade de se ter um espaço reservado de forma pública e gratuita para cuidar do grupo feminino vem de uma gama de insensibilidades e violências históricas que a área médica comete com as mulheres, naturalizando uma lógica patriarcal que se baseia na autoridade médica, sendo a medicina composta majoritariamente por homens em nosso país. A autoridade médica vem de uma combinação de status, poder e saber que coloca estes profissionais em um patamar diferente dos/as demais reles mortais. Ser doutor é um dos mais altos carismas do roteiro clássico dos desejos de um pai para um filho. O poeta Manoel de Barros mostra a tensão de frustrar tal desejo poderoso: “eu não queria ser doutor, eu só queria ser...”. É comum vermos pessoas humildes se referirem a alguém que se torna importante na sociedade como “doutor” ou “dotô”, seja médico ou não. O título transcende a profissão, assumindo uma envergadura social que impõe respeito sem precisar de complementos. Doutor de jaleco branco, então, é inquestionável, quase um semideus na Terra. O tamanho desse poder médico pode passar despercebido em algumas situações, no entanto, a epidemia de vício e morte por medicamentos opioides prescritos por médicos nos Estados Unidos nas duas últimas décadas evidencia uma sombra social gigantesca que nos afeta de múltiplas formas. O jornalista Radden Keefe, que investigou tal cenário no livro O império da dor, indicou o contexto da década de 1990 naquele país trazia em torno de 50 milhões de estadunidenses sofrendo algum tipo de dor crônica. E era justamente para anestesiar a dor, que os opioides surgiram como uma cura mágica. E o que está por trás dos opioides prescritos? A autoridade do “doutor de jaleco” que coloca sua reputação, seu carimbo, nome e assinatura, de forma que milhares de pessoas que nunca chegariam perto de uma droga como a heroína, encaminham-se voluntariamente – mas não conscientemente – à morte, com base na confiança poderosa e endeusada da autoridade médica. O médico anestesista Giovanni Bezerra que estuprou comprovadamente uma mulher grávida – e, não comprovadamente, talvez dezenas – no Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João do Meriti, RJ, se apoiava neste poder mítico de que os doutores, em especial os de jaleco branco, homens, ainda por cima, aqueles com poder de tirar nossa dor – os anestesistas – são inquestionáveis, intocáveis e amados como deuses.
A equipe de enfermagem do referido Hospital fez um trabalho de uma relevância histórica gritante. Sendo uma área profissional que frequentemente enfrenta situações desiguais em relação aos colegas da medicina, confrontou o poder da autoridade médica, apoiado em outras autoridades “invisíveis”, como o patriarcado e a branquitude, expondo ao país o quanto nós mulheres somos diariamente violadas dentro deste modelo.
O Hospital da Mulher e sua forte história de sensibilidade com as pequenas e grandes violências médicas que as mulheres têm sofrido estão agora diante de uma questão que ressoa na história das lutas feministas e que tem sido popularmente considerada radical ou uma declaração de “ódio aos homens”, no entanto, é preciso se perguntar: em um centro médico voltado às mulheres, criado justamente em reconhecimento às lacunas e às violências que o sistema de saúde geral promove para este grupo, não seria mais indicado contratar profissionais mulheres, de forma que as pacientes se sintam mais seguras e acolhidas? Tal ação, que pode ser vista como excludente, generalista, intolerante e promotora de mais segregação, talvez seja hoje um recurso para confrontar esse poder gigantesco que a autoridade médica carrega e não parece querer negociar.
Por favor, homens com poder, melhorem.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

