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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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Companheiro Alípio Freire, presente!

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As más notícias, que infelizmente correm depressa, me fazem saber que nessa madrugada faleceu, vítima da desgraça Covid-19, o poeta, ensaísta, jornalista, escritor e militante socialista Alípio Freire.  

Ele estava internado na UTI em São Paulo, padecendo uma intubação, e desta vez não pôde resistir como tantas vezes resistiu à tortura na ditadura, à infâmia e ao terror de Estado. Agora, do Vermelho, por André Cintra, vem o pedido para um depoimento sobre a pessoa, que se tornou meu amigo, Alípio Freire. Por isso recupero o texto que sobre ele publiquei, logo depois do lançamento de “Soledad no Recife” em São Paulo.  

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Alípio Freire, um poeta da resistência  

Em um belo dia de julho de 2009, o ex-preso político Alípio Freire nos guiou pelo Memorial da Resistência em São Paulo. Ali ele conduziu a mim, a minha esposa e filha pelas celas do Deops paulista e, em lugar da pura exposição do terror estatal, nos mostrou humanidade e sementes de esperança entre mortos e torturados.

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Enquanto Alípio discorria por entre aquelas paredes, era possível notar que nele  residiam juntos um artista plástico, um intelectual, um bom narrador de casos e causos, contados como se surgissem do nada, no meio de pausas entre um cigarro e outro. Mas isso, digamos, ainda não estava materializado como um documento íntimo, pessoal da história daqueles anos – eram percepções de passagem entre fumaças. A existência do Memorial era, é objetiva, a sua necessária e dura referência está ao lado de nós. Ali houve e há uma história ocorrida antes e agora pelo rescaldo da ditadura, da sociedade de classes, abjeta e objetiva.

Mal sabia eu que outro Memorial da Resistência já se encontrava em gestação, em uma forma imprevisível e original, como agora sei ao ler “Poemas – De Ordem Política e Social”. Pois aqui ocorre o lugar de um outro Departamento, que em vez de um Deops se estabelece como um Poeops, mas nada de Poe, de Allan Poe, porque Alípio Freire escreve à sua maneira a Poesia que é uma Resistência daquelas vidas de jovens e velhos, homens e mulheres subversivos contra a Ordem. E o resultado agora todos vão conhecer.

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Quisera eu poder guiá-los neste momento. Ainda que não tenha o dom do artista Alípio, quando em 2009 nos conduziu pelo Memorial da Resistência, tentarei algo à semelhança de uma apresentação do poeta neste livro que se abre como um fruto maduro, caído do pé da árvore do Brasil.

Na primeira revelação, descubro que todo poeta chama, reclama e ensina para o leitor uma nova poética – aquela que o liberta e nos liberta do vício do acostumado, da forma que é fôrma. Os indivíduos mais tradicionais e conservadores – e nada mais burro e estéril que pessoas condenadas à carga desses dois adjetivos – poderiam dizer que em alguns poemas de Alípio há uma tendência de versos que são uma prosa em linhas descontínuas. E com isso o estúpido confunde poesia com determinados temas e canto ao orvalho na flor, por um lado, e por outro, com a obscuridade, que com frequência é vista como sublime.

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Mas o que é a poesia? Será ela somente a de significados multívocos, quando não ambíguos, com a dignificação de “poesia aberta?” Ou seria ela, mais propriamente, aquele associada ao sentido de beleza e verdade, verdade e beleza, beleza e verdade, até o sol raiar e noite adentro? Se não for isso, parem aqui e respondam depois da leitura:

“Eu tenho uma casinha

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 lá na Marambaia

 fica na beira da praia

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 onde helicópteros e aviões da Aeronáutica

 despejavam corpos de opositores do regime.

 Alguns

 ainda com vida”

 Outros

 esquartejados.

 O terror de Estado contaminou tudo.

 Até o nosso mais lírico cancioneiro”.

Na segunda revelação, descubro que o seu livro é o lugar onde nasce e se inaugura uma floresta de citações mais adiante, em futuros discursos de políticos iluminados, em poemas vindouros de jovens poetas, em inteligentes conversas de muitos jovens e militantes de todas idades, inconformados com o lixo de mundo que recebem.  Se não, olhem alguns versos, como estes:

 “Da tragédia

 Nós sobrevivemos

 ao pau-de-arara.

 Mas o pau-de-arara

 também sobreviveu”.

Então vamos chegando mais perto da poética de Alípio Freire. A sua estética liga o domínio de conquistas cultas ao pensamento maduro, que gera reflexão, pois este é o poeta que não abstrai, não exclui o pensamento da sua poesia. Isso quer dizer: este poeta é um intelectual de esquerda, um pensador que exerce a sua história e cultura em um só corpo:

 “Coquetel

 Uma garrafa

 Uma rolha

 Gasolina

 Óleo 30

 Pólvora e ácido nítrico

 Ou uma mecha em chamas…

 … e…

 desde então

 aquela dificuldade insana de hierarquizar os alvos”.

 E mais esta Prestação de contas:

 “Para morrer

 basta estar vivo.

 Para viver

 não.”

A vontade que deixa na gente é de escrever somente com os seus poemas, porque descobrimos neles a expressão de um desconforto nosso, uma angústia que não teve ainda vida expressa. Como nestes versos, vizinhança de um epigrama:

 “Onde não há igualdade

 toda liberdade é sempre um excesso

 de privilégios”.

 Enfim, aqui reside uma poesia que são cravos, mas não são flores.

E assim se foi o poeta e militante socialista, que um dia me enviou este poema:   

 POEMA CLÁSSICO

Cabeça erguida

sigo em frente,

rumo à porta do Hades.

Ao me fitar nos olhos,

Cérbero foge ganindo,

o rabo entre as pernas.

Atravesso o umbral.

O Inferno jamais será o mesmo.

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