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Wilson Ramos Filho

Jurista, professor e escritor

68 artigos

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Concludente

A moroafetividade é como um carimbo de bolsonarismo na testa, quase como a inscrição no CRM. Um pigarro

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Soou a campainha, como uma cigarra. Abre-se a porta. O paciente anterior já deve ter saído pela outra. Não encontrando a revista que anuncia na capa o desmoronamento folheou as que demonizam a esquerda. Apressou-se, tempo contado. Boa tarde. Boa tarde. Não houve apertos de mão ou demonstração de simpatia. Aboletou-se no divã, olhos para o teto, ajeitando a saia do taiér de advogada. 

Silêncio. O analista dá a senha, duas tossidinhas forçadas. O lazarento nunca fala. Um dia eu largo essa joça.  

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Pelas atitudes, grandes ou pequenas, é possível saber em quem a pessoa votou nas eleições presidenciais, desandou a falar, com uma precisão quase absoluta. Não precisa nem perguntar.   

A moroafetividade é como um carimbo de bolsonarismo na testa, quase como a inscrição no CRM. Um pigarro. Deu-se conta do ato falho, psiquiatra é médico. Se tentar consertar piora. Melhor fazer de conta que não aconteceu e improvisar depois alguma maneira de amenizar ou relativizar a assertiva com o óbvio reconhecimento da existência de exceções.   

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Em certas tribos urbanas a adesão aos valores da Direita são pressupostos. Mas aí já é barbada, não vale. Todos sabem que mergulhadores, rarleiros, jipeiros, terraplanistas, marombeiros, pedaleiros, cursilhistas, entre tantos coletivos por afinidade, são majoritariamente devotos do capitão. Um muxoxo gutural. Que merda. De novo. Na recepção havia visto várias revistas de automobilismo, na parede uma santa ceia estilizada em mosaico, parecia ter tirado o dia para agredir o terapeuta. Não é aconselhável melindrar uma pessoa cujo apoio é importante, parafraseou mentalmente.   

No cotidiano das relações sociais concretas o estigma também se manifesta. Chamo o fenômeno de síndrome do apito. Meu amigo Amilton sempre repete que o poder filhadaputiza. Isso fica claro se observarmos nossos entornos. O guardador de carros fica bastante mais arbitrário quando arruma um colete destes cor-de-marca-texto. O figurino lhe confere a distinção autorizadora do exercício da arbitrariedade seletiva. É como as vestes talares. O micropoder do jaleco, do uniforme ou da toga resplandece orgulhosamente despertando os primitivos instintos da prepotência. Experimente dar um apito para essa gente só para ver. Lembro do árbitro de futebol conhecido por Margarida. Ao silvar, performático, se transformava, gestos coreografados, momentos de glória que só encontram paralelo em certas apresentações de pauerpointe. Percebeu o movimento na poltrona às suas costas. Questionou-se se havia dado mais uma involuntária patada. Deve ter sido coincidência. Ele deve me achar um babaca. Empatemo, como diz o caboclo.   

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Hoje há mais certeza na análise dos discursos, das práticas e das condutas das pessoas em suas vidas privadas do que na previsão de resultados nas demandas judiciais ou nos diagnósticos psicanalíticos. Cacete, meu subconsciente está parlapatão hoje, concluiu, emendando aos borbotões referências aos vigilantes que mataram a pauladas o cachorrinho e, por sufocamento, um negro naqueles dois supermercados, ao meganha que chutou a cabeça de um carrinheiro dominado, ao bombadinho que jogou a namorada da varanda, ao filho que assassinou o pai, ao motorista que atropelou manifestantes na greve geral. O funcionário que trata mal um cidadão no balcão do serviço público, o cliente que humilha o garçom, a jornalista que plagia, o procurador que combina estratégias condenatórias com o juiz, o segurança violento na balada, o mal-educado que ofende quem dele discorde nas redes sociais, batata, pode pesquisar, votaram no coiso. Ruído da caneta sobre o papel. Devo ter dito algo importante, a sessão está rendendo bem hoje.  

Em um segundo grupo a presunção não é absoluta, mas há uma grande probabilidade de que sejam bolsonaros. Nele se incluem os assediadores, perversos ou relacionais, os muito ignorantes, os defensores do armamentismo, os vira-latas culturais, os que exigem, raivosos, que os ráquers cumpram a lei e as autoridades não, e os que escolhem se expressar no estranho idioma dos medíocres. Refiro-me aos que enchem a boca para falar sinergia,  não há almoço grátis, ensinar a pescar, baipassar, zona de conforto, fundamentos, deus está no comando, fazer o dever de casa entre outras atitudes atentatórias ao bom-gosto vernacular e à razoabilidade. Em todos estes casos há uma presunção juris tantum de bolsonarismo precariamente enrustido. Suas atitudes falam por eles. Admitem prova em contrário, mas devem protocolá-las no balcão do nono andar, acessível apenas pela escada, riu nervosamente de sua própria piada.   

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Tem também os que ostentam sua própria ignorância, que odeiam literatura e poesia, que se orgulham de jamais entrar em um teatro e de raramente irem ao cinema. Não há provas, mas fortes convicções de que, no segundo turno votaram contra o petê. Ninguém se surpreende quando uma destas pessoas verbaliza preconceitos ou prática discriminação. Quanto menos letrado, quanto mais inculto, maior a possibilidade da criatura flertar com o fascismo, ainda que de modo inconsciente.   

Para que você se maltrata desta maneira? A pergunta colheu-a como um safanão.  Mania desse sujeito interromper meus raciocínios com a questão errada. Ao menos poderia ter tido a bondade de indagar por quê. Para quê. Sempre a mesma provocação sacana. Silêncio.   

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E assim ficaram um bom tempo. Ela olhando para dentro de si, escarafunchando seus sentimentos; o analista, mão no queixo, degustando a reação provocada na paciente, deliciando-se com o doce prazer que só as pequenas vinganças possuem, até fazer soar a campainha, como um apito. Comportamentos concludentes.

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