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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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Consciência negra e seu dia

Zumbi, substantivo masculino. Nome do herói brasileiro, pessoa de rara coragem, que se levantou contra a escravidão. Falecido no dia 20 de novembro, deu origem ao dia da consciência negra

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Publiquei uma vez para o Dia da Consciência Negra, há 5 anos, que era preciso acordar todos os dias e arregalar bem os olhos para ver o que a névoa ideológica não deixava. Isto é, o que mais causava espanto: onde estavam os generais, almirantes e brigadeiros negros? Onde estavam os reitores, presidentes de senado, da câmara, governadores negros? Onde estavam as nossas misses e modelos negras? Onde estavam, de modo mais sério, os nossos grandes físicos e cientistas negros? Onde estão? 

E não eram perguntas retóricas. Eu pedia que entendessem por que até os mulatos que pularam a cerca e o cerco da exclusão no Brasil, em um trabalho extraordinário, heroico e colossal de autoeducação, como havia sido  o caso de Machado de Assis, viraram  brancos. Pois não fazia muito tempo que um anúncio da Caixa Econômica Federal exibira um Machado de Assis ariano, bem distante do queimadinho de sol. Mas não só ele atestava a nossa glória de nação europeia. As imagens que viraram ícones de Carlos Gomes, de Castro Alves, ou num exemplo menos ilustre, de Roberto Marinho, todos eram brancos, ou quase brancos. 

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Mas hoje continuo e acrescento: quis a história que os pontos mais altos da arte e culturas brasileiras fossem atravessados ou inventados por negros e descendentes. Se a nossa cultura, como toda cultura do mundo, é mestiça, a nossa em particular encontra o seu elemento plástico no negro. Por ele, dele e nele se expressa melhor o nosso rosto nacional. E compreendam, porque eu quero dizer: ainda que se encontrem pessoas geniais, de pele branca, ou descendência direta de europeus, a sua expressão é mestiça quando brasileira. E penso e vou mais longe, porque dou um salto arriscado das artes até a ciência mais física. Penso, por exemplo, no gênio universal de Mário Schenberg, quando ele batizou o fenômeno de perda de energia nas estrelas com o nome de Efeito Urca, numa homenagem ao Cassino da Urca. Isso lá nas estrelas. 

Mas é no térreo terreno das artes, da literatura, que a obra de brancos no Brasil é nacional porque é mestiça, quando não de cor acentuada de negros. Eu estou pensando agora nos quadro de Tereza Costa Rêgo onde, ela própria mestiça de pele clara, expressa misturada os temas da vida de Pernambuco. Para lembrar só um, menciono A Batalha de Tejucupapo https://revistacontinente.com.br/public/uploads/data/files/tejucupapo_A.jpg .  

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No entanto, avancemos na mestiçagem para a cor mais preta. Para nada vezes nada falar sobre o gênio fundador de Machado de Assis, ou da rebeldia de futuro de Lima Barreto, penso de modo mais preciso, particular do meu ser, em Cruz e Souza.  

Ainda sem saber que a expressão melhor da gente é arte, eu comecei a me interessar por literatura quando conheci em um dia remoto da adolescência  o soneto Só! de Cruz e Sousa. Estes versos me estremeceram:
 

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“Muito embora as estrelas do Infinito

Lá de cima me acenem carinhosas

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E desça das esferas luminosas

A doce graça de um clarão bendito;

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Embora o mar, como um revel proscrito,

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Chame por mim nas vagas ondulosas

E o vento venha em cóleras medrosas

O meu destino proclamar num grito,
 

Neste mundo tão trágico, tamanho,

Como eu me sinto fundamente estranho

E o amor e tudo para mim avaro...


Ah! como eu sinto compungidamente,

Por entre tanto horror indiferente,

Um frio sepulcral de desamparo!”


Quando eu li esse poema, senti que Cruz e Sousa parecia falar para mim, e no entanto falava da própria dor. Eu era adolescente e esses versos chegaram com força em um momento de profunda revolta, mais revolta que desalento. Então ali começou o meu longo e infindável aprendizado. Hoje sei que falamos do mundo quando falamos do mundo que vai dentro da gente. 

Agora percebo que Cruz e Sousa falava assim tão profundo porque expressava a própria dor na sua maneira mais trágica e brasileira. Com a identidade da expulsão da felicidade, à qual teria direito por natureza, legitimidade, talento e amor das gentes. 

 A esta altura, noto como uma falta irreparável nada ter falado sobre a fecundação negra em nossa música popular e no carnaval. Maracatu de baque virado! Ele protesta por não ter sido chamado à luz destas linhas  

https://www.youtube.com/watch?v=0wbOLONIb6o  

Melhor concluir como há cinco anos, pois haveria muito ainda a falar. Para o dia 20 de novembro, dia da consciência negra, que assinala a morte do grande Zumbi dos Palmares, destaco o ocorrido com o seu nome, no bairro do Zumbi no Recife. Quando pesquisei para o Dicionário Amoroso do Recife, pude ver que  na língua portuguesa o nome Zumbi significa alma que vagueia a horas mortas, ou fantasma de animal morto, ou com o sentido último de ser o título do chefe de um quilombo, zambi. Estranho, não? Ou melhor, faz um sentido histórico, porque alma de assombração ou fantasma de animal morto lembra mais uma vingança póstuma contra um herói na luta contra a escravidão. 

E quanto ao bairro?  O Zumbi, no Recife, foi o Engenho de Ambrósio Machado, lugar de cultivo de cana no trabalho escravo, desde a dominação holandesa. O sociólogo e jornalista José Amaro Correia, amigo já falecido, assim me informou, lembrando o bairro onde ele morou na infância:  “Diziam para as crianças: ‘Zumbi vai te pegar’. O medo que havia nos senhores de engenho foi transferido para os explorados. O explorado repetia à sua maneira a consciência do explorador. Até os meus 14 anos de idade, para mim e para todos os meninos, Zumbi não era coisa boa. Esse nome era associado ao bairro. Para as pessoas de fora, nós dizíamos que morávamos na Madalena. Nos anos 50, ainda  falavam para as crianças que Zumbi ia voltar, como se fosse uma ameaça. Era o comentário, era o aviso na infância: ‘Zumbi vai voltar’. As mães do bairro diziam para os filhos: ‘não volte tarde, porque Zumbi pode te pegar’”.

Assim pude ver a origem histórica do bairro e do seu nome. De lugar de escravos, de terras de senhor de engenho, a lugar onde voltaria Zumbi, desta vez como uma ameaça aos proprietários, e para os descendentes dos explorados, até hoje, como uma assombração, no registro dos dicionários. Que deveria receber um novo significado, que a consciência do novo tempo nos ensina. Deixo a sugestão para atualizar o verbete nos dicionários: 

Zumbi, substantivo masculino. Nome do herói brasileiro, pessoa de rara coragem, que se levantou contra a escravidão. Falecido no dia 20 de novembro, deu origem ao dia da consciência negra. 

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