Consensos ensaiados em público, traições e sabotagens consumadas no plenário
A sessão que manteve o mandato de Zambelli expôs um Parlamento que celebra consensos no discurso, mas detona decisões judiciais no voto
Amigos cordiais, inimigos íntimos. Assim se observam, nos dias atuais, Legislativo e Judiciário. A liturgia pública é feita de reverências — “Vossas Excelências”, “respeito democrático”, “compromisso com a sociedade”, “dever republicano”. Mas basta virar o corredor para que o vocabulário mude: conveniência, sobrevivência, cálculo, oportunidade.
Os mesmos que discursam pelo bem-estar coletivo alimentam, sem rubor, a engrenagem silenciosa do “toma lá, dá cá”. Endurecem penas para crimes comuns, com uma pressa quase catequética; mas aliviam delitos quando praticados pelo andar de cima — muitos deles atentatórios ao próprio Estado Democrático de Direito.
Eis o paradoxo de um sistema que se exibe virtuoso enquanto relativiza o cimento moral que pretende defender.
Essa contradição desnuda algo mais profundo: a erosão do sentido constitucional da separação dos poderes. Desde 1988, Legislativo, Executivo e Judiciário foram definidos como independentes e harmônicos — não para que cada um governasse a si mesmo, mas para que cada um limitasse o outro. Independência não é isolamento; harmonia não é servilismo.
O sistema de freios e contrapesos foi pensado para impedir que maiorias súbitas ou corporações influentes capturassem o Estado. Quando um Poder tenta reescrever uma decisão do outro, desfaz-se a contenção que sustenta o edifício republicano. Quando isso se repete, não é mais um desvio: é método.
O caso Carla Zambelli tornou-se a prova viva desse método.
Em 21 de março de 2024, a 1ª Turma do STF a condenou a 4 anos de prisão, mais multa de 400 salários mínimos, inelegibilidade e perda de mandato. Em 24 de outubro, outra condenação: 5 anos e 3 meses pela perseguição armada contra um eleitor em 29 de outubro de 2022 — episódio que rompe qualquer defesa plausível de decoro. Antes da execução das sentenças, fugiu para a Itália e foi presa em 31 de outubro de 2024, em Modena, iniciando processo de extradição.
Em junho de 2025, o STF comunicou à Câmara o trânsito em julgado e determinou a perda de mandato pela Mesa Diretora, sem votação, conforme manda a Constituição quando o parlamentar está preso e impedido de comparecer às sessões. A Constituição não pediu criatividade; pediu cumprimento.
A Câmara optou por reinterpretar o texto constitucional. Será que nutre o anseio de ser Câmara Federal Revisora do Judiciário? Se for, estão tão alucinados quanto o ChatGPT e o Grok.
Hugo Motta enviou o caso à CCJ, onde tramou-se uma coreografia de adiamentos que em nada honrou o espírito republicano. Em 27 de novembro, a CCJ rejeitou o parecer que absolvia Zambelli. Em 28 de novembro, aprovou-se o parecer que recomendava sua cassação. E, ontem, 10 de dezembro de 2025, o plenário decidiu preservá-la: 227 votos, insuficientes para atingir os 257 exigidos. Salvou-se o mandato de quem não pisa no plenário há mais de um ano.
O contraste com Glauber Braga, punido por agressão física e suspenso, mas não cassado, tornou-se didático. A Câmara considerou decoro parlamentar o que envolve um chute; mas não considerou decoro a falsificação de ordem judicial, a perseguição armada e duas condenações definitivas pelo STF. A teoria do direito conhece esse fenômeno: injustiça performativa, quando a própria instituição contradiz a norma que deveria aplicar.
Lindbergh Farias já informou que recorrerá ao STF — e o precedente Donadon, de 2013, mostra que o tribunal pode suspender a decisão e exigir nova votação. Não por revanche, mas para restaurar a coerência mínima da Constituição.
No mesmo dia, o Senado aprovava o projeto antifacção relatado por Alessandro Vieira, fortalecendo Receita Federal, COAF, CGU e Polícia Federal — um movimento explícito para robustecer o Estado contra o crime organizado.
Enquanto um Poder tenta reforçar as instituições, outro afrouxa a exigência mínima que se espera de um mandato parlamentar. Surtos cognitivos do Poder Legislativo neste ano de 2025.
O constitucionalismo brasileiro não sobreviverá à contabilidade moral de ocasião. A democracia não se sustenta quando o cumprimento da lei depende do humor da maioria, nem quando a política trata a Constituição como sugestão, não como pacto.
Porque nenhum país permanece de pé quando a lei perde o mandato — e a contradição o preserva.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

