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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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Consensos ensaiados em público, traições e sabotagens consumadas no plenário

A sessão que manteve o mandato de Zambelli expôs um Parlamento que celebra consensos no discurso, mas detona decisões judiciais no voto

Brasília - 24/09/2025 - Reunião da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara para ouvir a deputada federal Carla Zambelli (Foto: Lula Marques/Agência Brasil)

Amigos cordiais, inimigos íntimos. Assim se observam, nos dias atuais, Legislativo e Judiciário. A liturgia pública é feita de reverências — “Vossas Excelências”, “respeito democrático”, “compromisso com a sociedade”, “dever republicano”. Mas basta virar o corredor para que o vocabulário mude: conveniência, sobrevivência, cálculo, oportunidade.

Os mesmos que discursam pelo bem-estar coletivo alimentam, sem rubor, a engrenagem silenciosa do “toma lá, dá cá”. Endurecem penas para crimes comuns, com uma pressa quase catequética; mas aliviam delitos quando praticados pelo andar de cima — muitos deles atentatórios ao próprio Estado Democrático de Direito.

Eis o paradoxo de um sistema que se exibe virtuoso enquanto relativiza o cimento moral que pretende defender.

Essa contradição desnuda algo mais profundo: a erosão do sentido constitucional da separação dos poderes. Desde 1988, Legislativo, Executivo e Judiciário foram definidos como independentes e harmônicos — não para que cada um governasse a si mesmo, mas para que cada um limitasse o outro. Independência não é isolamento; harmonia não é servilismo.

O sistema de freios e contrapesos foi pensado para impedir que maiorias súbitas ou corporações influentes capturassem o Estado. Quando um Poder tenta reescrever uma decisão do outro, desfaz-se a contenção que sustenta o edifício republicano. Quando isso se repete, não é mais um desvio: é método.

O caso Carla Zambelli tornou-se a prova viva desse método.

Em 21 de março de 2024, a 1ª Turma do STF a condenou a 4 anos de prisão, mais multa de 400 salários mínimos, inelegibilidade e perda de mandato. Em 24 de outubro, outra condenação: 5 anos e 3 meses pela perseguição armada contra um eleitor em 29 de outubro de 2022 — episódio que rompe qualquer defesa plausível de decoro. Antes da execução das sentenças, fugiu para a Itália e foi presa em 31 de outubro de 2024, em Modena, iniciando processo de extradição.

Em junho de 2025, o STF comunicou à Câmara o trânsito em julgado e determinou a perda de mandato pela Mesa Diretora, sem votação, conforme manda a Constituição quando o parlamentar está preso e impedido de comparecer às sessões. A Constituição não pediu criatividade; pediu cumprimento.

A Câmara optou por reinterpretar o texto constitucional. Será que nutre o anseio de ser Câmara Federal Revisora do Judiciário? Se for, estão tão alucinados quanto o ChatGPT e o Grok.

Hugo Motta enviou o caso à CCJ, onde tramou-se uma coreografia de adiamentos que em nada honrou o espírito republicano. Em 27 de novembro, a CCJ rejeitou o parecer que absolvia Zambelli. Em 28 de novembro, aprovou-se o parecer que recomendava sua cassação. E, ontem, 10 de dezembro de 2025, o plenário decidiu preservá-la: 227 votos, insuficientes para atingir os 257 exigidos. Salvou-se o mandato de quem não pisa no plenário há mais de um ano.

O contraste com Glauber Braga, punido por agressão física e suspenso, mas não cassado, tornou-se didático. A Câmara considerou decoro parlamentar o que envolve um chute; mas não considerou decoro a falsificação de ordem judicial, a perseguição armada e duas condenações definitivas pelo STF. A teoria do direito conhece esse fenômeno: injustiça performativa, quando a própria instituição contradiz a norma que deveria aplicar.

Lindbergh Farias já informou que recorrerá ao STF — e o precedente Donadon, de 2013, mostra que o tribunal pode suspender a decisão e exigir nova votação. Não por revanche, mas para restaurar a coerência mínima da Constituição.

No mesmo dia, o Senado aprovava o projeto antifacção relatado por Alessandro Vieira, fortalecendo Receita Federal, COAF, CGU e Polícia Federal — um movimento explícito para robustecer o Estado contra o crime organizado.

Enquanto um Poder tenta reforçar as instituições, outro afrouxa a exigência mínima que se espera de um mandato parlamentar. Surtos cognitivos do Poder Legislativo neste ano de 2025.

O constitucionalismo brasileiro não sobreviverá à contabilidade moral de ocasião. A democracia não se sustenta quando o cumprimento da lei depende do humor da maioria, nem quando a política trata a Constituição como sugestão, não como pacto.

Porque nenhum país permanece de pé quando a lei perde o mandato — e a contradição o preserva.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.