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Vladimir Safatle

Professor titular do Departamento de Filosofia da USP

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Construir futuros

Vladimir Safatle traça considerações sobre o livro “O terceiro excluído – contribuição para uma antropologia dialética”, de Fernando Haddad

Fernando Haddad no lançamento do seu livro "O Terceiro Excluído" (Foto: Diogo Zacarias)
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Por Vladimir Safatle 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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“Ao expulsar a contradição do seu repertório, as humanidades deixam-se biologizar, e a dimensão específica do humano perde-se num pseudocientificismo que, da ciência, só guarda a aparência. Hegel, a seu tempo, teve que entronizar a contradição no reino da lógica para encontrar Deus. Devemos reentronizar a contradição no reino das ciências humanas (agora no lugar certo), se quisermos abrir caminho para encontrar a humanidade”.

É assim que termina O terceiro excluído – contribuição para uma antropologia dialética, de Fernando Haddad. Do começo ao fim, do título ao último parágrafo, há o esforço de delimitar o horizonte efetivo do projeto que anima o livro, a saber, criar as condições para que a dialética se afirme como figura fundamental do pensamento crítico, levando em conta o estado atual das ciências empíricas. Nesse sentido, é de uma atualização possível da dialética como forma da crítica que se trata; mesmo que o livro, devido à extensão de sua tarefa, foque naquilo que poderíamos chamar de “introdução” a tal projeto.

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Se quisermos ser mais precisos, O terceiro excluído foca nas condições de possibilidade para uma atualização possível da dialética diante do quadro atual das ciências empíricas, que estão presentes através da tríade: biologia, antropologia e linguística. Pois a questão que ele procura responder é: “o estado atual das ciências empíricas invalida o materialismo histórico ou, antes, nos permite definir melhor o lugar de sua emergência necessária?”.

À sua maneira, esse projeto dialoga com certa tradição do pensamento crítico nacional da qual o autor faz parte, essa mesma que viu na recuperação rigorosa da dialética uma maneira privilegiada para pensar os impasses e paralisias da vida nacional. A mesma tradição que fez dessa recuperação a ponta de lança para a experiência intelectual brasileira ler e criticar as outras modalidades de pensamento crítico que se desenvolveram na cena internacional a partir dos anos 1960.

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No entanto, como se trata de condição de possibilidade, o livro de Fernando Haddad procura, à sua maneira, fazer um caminho inusitado que está enunciado na primeira frase do trecho que abre esse artigo. Pois se, até agora, recuperar a dialética e operar uma guinada materialista significou, entre nós, estabelecer sua gênese através das contradições sociais que se explicitam principalmente em países periféricos ou, ainda, entendê-la como motor para ações e formas de pensar capazes de impulsionar transformações globais de estrutura, pelas mãos de Fernando Haddad retornar ao materialismo histórico tem outro sentido. Trata-se de confrontar o pensamento dialético ao estado atual das ciências, tendo como eixo um risco fundamental que se expressaria na redução do humano ao biológico.

Mas poderíamos nos perguntar por que tal redução ao biológico implicaria risco tão grande? Uma resposta possível é dada pelo próprio autor logo nas primeiras páginas, ao detectar: “A presença de um certo discurso evolucionário nas novas concepções sobre o funcionamento da economia e da sociedade, particularmente quanto a termos como difusionismo, cooperação/altruísmo e institucionalismo que traçavam paralelos entre desenvolvimento nacional, de um lado, e evolução, de outro”.

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Pelas vias do biológico, nossa época estaria a produzir uma reconstrução normativa dos discursos sobre a sociedade, impondo uma confusão entre desenvolvimento social e evolução natural que, afinal, tem uma longa história no interior do que chamamos atualmente de “ciências humanas”.

Nesse sentido, o recurso das humanidades à biologia apareceria como uma estratégia de naturalização das formas sociais e dos processos de exclusão vinculados ao desenvolvimento. Pois nessa sujeição ao biológico, a experiência social estaria prisioneira do binômio variação/seleção, estaria à mercê de uma ideologia positivista no interior da qual a violência social seria apenas expressão necessária da seleção que operaria no desenvolvimento da vida social.

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Não deixa de ser útil lembrar aqui de uma tradição importante de teorias da democracia para a qual a redução das formas sociais à organicidade do biológico é sinal de autoritarismo (Claude Lefort). Nem seria menos útil lembrar que regimes totalitários, como o fascismo, se autodefiniam como: “nada mais do que biologia aplicada” (Rudoulph Hess).

Diante disto, haveria dois caminhos possíveis. O primeiro seria problematizar a visão do biológico como campo submetido a uma normatividade incapaz de dar espaço ao antagonismo e à contradição que seria própria do humano. Isso poderia nos levar a repensar as relações entre contingência e necessidade na variação natural (Monod), em levar em conta a maneira com que a vida se serve de valores negativos, como a doença e o suicídio celular, para produzir novas formas (Canguilhem, Ameisen), ou ainda, explorar o fato de certas teorias do comportamento humano, como a psicanálise freudiana, aceitar que a pulsionalidade humana não implica em distinções estritas entre biológico e social. Talvez acabássemos por recuperar o monismo hegeliano em outras bases.

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O terceiro excluído segue, no entanto, um segundo caminho. Um caminho que consiste em lembrar que a experiência efetivamente humana produz a emergência de três realidades absolutamente singulares. São elas: a temporalidade histórica, o uso simbólico da linguagem e, talvez o mais importante, a produção de diferença interna através da contradição. A importância dessas três emergências estaria no fato delas permitirem o advento do humano como “um único grupo aberto à alteridade radical”. A tese merece uma análise com mais vagar.

Tempo, linguagem e antagonismo

Ao se perguntar sobre como o comportamento humano transcenderia o biológico, Fernando Haddad encontra a tese de Francois Jacob a respeito da especificidade da temporalidade social. A tese é importante por permitir a defesa de um processo de emergência da autoconsciência da plasticidade do tempo, o que permitiria operações como: projetar-se no tempo, definir o instante como presente, entre passado e futuro, criar o tempo como processualidade. Em suma, seria tal temporalidade que nos permitiria “construir futuros”, nos libertando da imediatez da qual todos os organismos seriam prisioneiros.

Assim, o autor falará da “capacidade de inventar um porvir, expresso na criação mental de mundos possíveis, para além, inclusive, da própria morte do organismo. O cérebro humano, para Jacob, adquiriu a capacidade de fragmentar as imagens memorizadas de acontecimentos passados e recombiná-las, a partir de fragmentos, para produzir representações até então desconhecidas, com vistas a possíveis acontecimentos futuros”.

Essa temporalidade, que implica uma memória não pensada como arquivamento, mas como reconstrução (e que encontramos em neurocientistas como Eric Kandel), pede outra emergência, a saber, a de uma linguagem simbólica que seria também especificidade do humano. E não deixa de ser sugestivo que essa maneira de compreender a antropogênese tenha ressonâncias com outra leitura da dialética que também opera com uma ruptura estrita entre natureza e história, tal como a pressuposta por Fernando Haddad. Trata-se de Alexandre Kojève: referência importante para a tradição dialética da qual parte Fernando Haddad.

Pois vem de Alexandre Kojève a compreensão de que a temporalidade própria ao mundo humano depende radicalmente da emergência da linguagem simbólica, da superação das relações duais e imediatas e, necessariamente, do construtivismo aberto que o símbolo permite. Quem um dia afirmou que: “a palavra é o assassinato da coisa”, disse isso na expectativa de salientar que a negação imediata do dado é possibilidade de projeção da ação humana em um horizonte de indeterminação propriamente histórica.

Mas um dos elementos realmente decisivos desse projeto de O terceiro excluído está em sua maneira de articular temporalidade histórica e linguagem simbólica ao primado da contradição como forma fundamental de produção social da diferença. De certa forma, o livro parece caminhar para a defesa da produtividade da contradição como processo que permite a produção do tempo e da linguagem.

Muito haveria a se dizer a respeito dessa forma de retomar a contradição em um horizonte filosófico, como o de nossa época, no qual contradição tende a ser vista como “falso movimento” que anula a potência de criação das diferenças efetivas. Mas vale a pena aqui recuperar a proposta de Fernando Haddad devido à sua elegância. Ela não é, por exemplo, a saída que Theodor Adorno sugeria, ao lembrar que, em uma sociedade como a nossa, na qual a diferença não poderia ser posta sem anular-se pela reificação de nossa linguagem e pelas dinâmicas de integração próprias ao capital, a diferença efetiva só poderia aparecer para nós como contradição lógica, como ponto de torção da linguagem.

Na verdade, a costura do livro consiste em recuperar o conceito de estranhamento tal como aparece em Freud (unheimlichkeit) por ele representar o movimento produtor de uma diferenciação interna. Em uma reflexão entre a crítica literária e a análise da pulsionalidade humana, Freud lembra da força dessas relações com o que parece embaralhar nossa distinção entre familiar e não familiar, entre próximo e distante, entre eu e outro, ego e alter.

Freud fala então dos duplos e dos autômatos que parecem ter uma figura humana. Sua questão gira em torno de como tais relações impõem um descentramento dos sujeitos que os levam a uma recomposição, muitas vezes dramáticas, das distinções entre identidade e diferença. Fernando Haddad vê nesse espaço a presença de uma contradição que impulsiona o tempo humano para uma dinâmica sem origem.

Essa contradição, que agora opera em um nível fenomênico elementar, seria operador de uma abertura em direção à ordem humana. Ordem assombrada por relações a alteridades não estabilizadas, ordem que produz formas a partir de tais relações e que, por isso, inaugura algo a mais em relação à temporalidade e à linguagem. Ordem que inaugura a política.

Sendo assim, não seria possível terminar essa resenha sem sugerir uma articulação própria à natureza anfíbia do autor, entre a vida política institucional e a vida intelectual. Por mais que o livro seja muito econômico a respeito de digressões sobre a ordem política atual, não é difícil perceber como ele é animado por um forte desejo de encontrar os fundamentos para um universalismo de outra natureza. Não um universalismo por partilha geral de atribuições, mas um universalismo por implicações generalizadas.

Em uma era histórica na qual a relação à alteridade se mostra como questão política dramática, e não apenas como questão moral ou epistêmica, a defesa do caráter instaurador de uma relação à alteridade que não pode ser compreendida como relação de “tolerância”, mas que é relação dinâmica de reconhecimento e de transformação de si, de tensionamento e de internalização de contradição, mostra a consciência clara de problemas que só agora começamos a compreender em sua verdadeira extensão.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult.)

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