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Gabriel Humberto Palafox

Professor titular da Universidade Federal de Uberlândia. Especialista em Políticas e Gestão da Educação e Educação Popular

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Corpos, notas fiscais e carrinhos: o racismo estrutural no cotidiano das relações entre corporeidades “brancas e negras”

Análise das tensões e desigualdades que moldam as interações entre corporeidades brancas e negras no dia a dia

Pergunta:

De que forma, gestos cotidianos, e/ou cenas da vida real “revelam” a presença, a persistência e a lógica do racismo estrutural nas nossas relações sociais?

Contexto

As cenas a seguir, não foram fruto da imaginação. Elas realmente aconteceram.

Cena da vida real #1

Um homem branco foi à loja, comprou e recebeu os produtos em uma sacola. O caixa perguntou se levaria a nota fiscal, e ele respondeu que podia jogá-la no lixo.

A companheira, negra, aproximou-se do homem e perguntou pela nota fiscal. Ele disse que havia pedido para descartá-la. Ela então foi até o caixa, pegou a nota amassada que havia sido jogada no lixo e a guardou na sacola.

O homem branco, surpreso, perguntou por que ela fez aquilo, se não era necessário ficar com a nota fiscal.

Ela respondeu: - homem, sou uma mulher negra saindo de uma loja com uma sacola. Você não entende? Desde pequena fui ensinada a ficar com a nota fiscal, pois a possibilidade de ser parada por seguranças e ser confundida com ladra é uma situação “normal” para nós.

Cena da vida real #2.

Um homem negro vê a namorada, branca, sair do supermercado levando as sacolas das compras num carrinho em direção à rua, fora do estacionamento do estabelecimento.

Surpreso, diz a ela que se ele tivesse saído até a rua com o carrinho de compras, com certeza, teria sido parado por seguranças no meio do caminho.

Análise da questão:

Aparentemente “banais”, as duas cenas acima descritas, fazem parte daquilo que a sociologia crítica define como “racismo estrutural”. Trata-se, não de um conjunto de ações isoladas ou preconceitos individuais, mas de um sistema de organização social, política e econômica que naturaliza privilégios para pessoas brancas e reproduz desigualdades contra pessoas negras (ALMEIDA, 2019).

Mas, onde estão os privilégios para uns e as desigualdades para outros nos casos acima apresentados?: Eles estão presentes em situações corriqueiras que obrigam às pessoas negras a agirem de forma completamente diferente das pessoas brancas, e cujo comportamento é historicamente regulado pela condição de raça/cor da pele. Esta condição racial é utilizada como um “marcador de risco”, suspeita e desconfiança no contexto das relações sociais diárias onde a corporeidade negra está historicamente inscrita como “um corpo perigoso, suspeito, inferior ou fora do lugar” (FANON, 1952, p. 84).

Denomino Corporeidade à expressão viva do ser humano que sente, pensa e age em relação ao mundo. Trata-se da expressão do “ser vivo”, histórico e social que carrega em si, de forma indissociável, tanto as marcas da opressão quanto as possibilidades de libertação (Muñoz Palafox, 2022).

A corporeidade humana é, portanto, o modo como cada pessoa se materializa na sua existência, e se faz presente no mundo. Um mundo onde cenas, tal como acima narradas, são vistas pelas corporeidades negras, como expressões de resistência em defesa da própria dignidade, considerando que na sociedade existem e funcionam estruturas de “vigilância simbólica” e material (BOURDIEU, 2010; 2014) que, em última instância, condicionam narrativas, constrangem comportamentos, e procuram, inclusive, regular a mobilidade das próprias “corporeidades racializadas” (ALVES, 2020).

É por esses motivos, que as corporeidades negras aprendem, desde pequenas, que sempre precisaram “provar” a sua inocência antes mesmo de serem acusadas de alguma coisa. Uma herança do imaginário escravocrata que insiste em persistir nas estruturas sociais contemporâneas, de consumo e segurança.

Além disso, como bem diz Ângela Davis (2016), o racismo se articula às dimensões de gênero e classe, por meio da produção de uma experiência interseccional de opressão. Portanto, o exemplo da mulher negra que guarda intencionalmente a nota fiscal das compras, não pode ser visto apenas como uma questão de raça/cor, mas também, como uma questão de gênero associada à “tomada de consciência antecipadora do perigo”. Uma espécie de “treinamento de sobrevivência” que se transmite entre gerações, enquanto as corporeidades brancas se constituem hegemonicamente por meio da negação da alteridade negra. Ou seja, por meio do racismo que […] define quem é o sujeito e quem é o outro, quem pertence e quem é estrangeiro” (KILOMBA, 2019, p. 45).

Dessa forma, quando o homem branco decidiu jogar no lixo a nota fiscal da compra realizada, ele agiu “naturalmente” a partir do seu lugar de pertencimento racial, o qual dificilmente poderá ser lido como ameaça, enquanto que a companheira dele, ao agir de modo cauteloso, sabia, desde pequena, que a neutralidade é algo que a ela nunca lhe foi concedida.

Considerações Gerais.

Espera-se que análise das cenas descritas, possam contribuir para que nós, especialmente as corporeidades brancas, tomemos consciência plena da lógica estruturante do racismo, quem, dentre outros aspectos, define ideologicamente, quem pode agir de forma espontânea, e quem precisa aprender a calcular cada gesto realizado para evitar constrangimentos e/ou violências. Em outras palavras, que aprendamos a identificar e superar comportamentos orientados por uma necropolítica ou estrutura de poder orientada para definir e decidir quem pode viver sem medo e quem deve ser constantemente exposto à possibilidade da morte simbólica e/ou física (MBEMBE, 2018).

O desafio, como lembra Bell Hooks (1992), é transformar a consciência crítica em prática libertadora, fazendo do cotidiano um campo de resistência e reeducação ética.

Considerando que “a luta antirracista começa nos gestos, nas palavras e nas pequenas escolhas de cada dia”, ela não é uma tarefa exclusiva das corporeidades negras, mas de todas as corporeidades.

Referências

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

ALVES, Dina. Corpografias raciais: uma etnografia das captividades femininas negras em São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2020.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.

DAVIS, Ângela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. [1952]. Salvador: EDUFBA, 2008.

HOOKS, bell. Black Looks: Race and Representation. Boston: South End Press, 1992.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 Edições, 2018.

MUÑOZ PALAFOX, Gabriel Humberto. A corporeidade e a dialética da opressão/libertação: aproximações filosófico-pedagógicas à perspectiva do “ser mais” freiriano. Revista de Educação Popular, Uberlândia, v. 21, n. 2, p. 120-136, maio-ago. 2022.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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