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Criança esperança X Cieps

No melhor estilo "We are the world", o Criança Esperança não deixa de guardar certa espetacularização da pobreza

No melhor estilo "We are the world", o Criança Esperança não deixa de guardar certa espetacularização da pobreza (Foto: Roberto Bitencourt da Silva)
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Zapeando a TV me deparei com anúncio da Rede Globo, interpelando aos telespectadores a contribuir com doações para a campanha Criança Esperança. Não assisto com frequência a programação da Globo, de modo que me surpreendi com a chamada televisiva de uma campanha filantrópica que possui quase 30 anos. Não restam dúvidas quanto à motivação para a longa permanência dessa campanha: o simpático e emotivo apelo de ajuda às crianças pobres. Tudo muito bem, não fosse a época em que surgiu o Criança Esperança e o seu significado político.

O Criança Esperança, patrocinado pela Rede Globo, foi criado em 1986. No melhor estilo "We are the world" (canção gravada nos EUA, envolvendo astros da música pop, em auxílio ao combate à fome na África, em 1985), o Criança Esperança não deixa de guardar certa espetacularização da pobreza. Reconhecida pela competência artística e técnica na produção de novelas, a dramatização que atravessa os apelos nos intervalos comerciais, e na programação da TV da família Marinho, gera audiência e, convenhamos, a Globo sabe produzi-la com maestria. O Criança Esperança não escapa dessa lógica. De acordo com material memorialístico da Globo, ao lançar a campanha, o objetivo era o seguinte: "Despertar a consciência e a sensibilidade dos brasileiros para os direitos da população infanto-juvenil". Tinha em vista ainda contribuir "para criar um forte movimento que introduziu a questão da infância na agenda política" (1).

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Em que pesem os nada humildes propósitos autopropagandeados pela Globo, no mesmo período em que foi lançada a campanha Criança Esperança, já haviam ganhado repercussão nacional as iniciativas educacionais promovidas pelo governador Leonel Brizola e por seu vice, Darcy Ribeiro, no Rio de Janeiro. Refiro-me à educação em horário integral por meio do projeto dos Cieps. Pretendia-se retirar as crianças das ruas, assegurando os seus direitos à educação, alimentação e assistência médica, durante as manhãs e as tardes nas escolas. Basicamente, o projeto teve que contar com recursos do próprio estado, já que, de um lado, não havia garantias em lei para transferências financeiras da União. O Fundef só veio à luz nos anos 1990 e a sua ampliação para o ensino médio, com o Fundeb, anos depois. De outro lado, o ditador Figueiredo e o seu sucessor José Sarney tinham em Brizola um empedernido adversário a combater. A grana era escassa para o governador.

O projeto educacional tinha inspiração pedagógica em Anísio Teixeira e Gramsci. Portanto, uma escola que pudesse levar em conta a realidade das crianças submetidas à miséria e à pobreza. Visava assegurar os seus direitos efetivos ao estudo. Darcy Ribeiro a classificava como uma "escola honesta". Entendia que somente a escola em horário integral poderia acompanhar o alunado nos estudos. Os pais – que trabalhavam e tinham pouca instrução – não possuíam condições de acompanhar e auxiliar os "deveres de casa" dos estudantes. Isso era coisa para as classes médias e altas da sociedade, que possuíam e possuem maior escolaridade e espaço físico nas residências, para a feitura de trabalhos escolares, diria o grande Darcy. Os Cieps receberam muitas críticas. Algumas pertinentes e outras reacionárias. Em todo caso, teve em Paulo Freire – um símbolo das lutas políticas e do pensamento progressista na educação – um simpático defensor.

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Como a Globo encarava os Cieps? No curso dos anos 1980/90 não se cansava de argumentar que eles se tratavam de "assistencialismo", de "escolas caras que oneram o erário público" e que "alienam os pais da formação dos alunos". Sobretudo em relação à última crítica, as Organizações Globo tinham no general e ex-ditador Ernesto Geisel um importante parceiro de opinião. Não gratuitamente, o governador Moreira Franco (1987/1991), candidato da TV Globo e do presidente Sarney, vitorioso no pleito eleitoral de 1986, sentiu-se à vontade para desmontar o projeto educacional. Em matéria publicada em 1990, o jornal O Globo chegou a atribuir aos Cieps, que foram abandonados pelo sucessor de Brizola, um peculiar destino: estimular a "favelização" e a "criminalização", por meio da ocupação feita por "desabrigados" (O Globo, 27/05/1990, p.22). Para o jornalão, a responsabilidade seria de Brizola. Igualmente, O Globo alegava "ineficiência", destacando que as crianças precisavam trabalhar para ajudar no sustento da família.

O Criança Esperança, desse modo, não deixa de representar uma resposta da Globo aos Cieps. Ao invés de uma política de Estado para gerar oportunidades aos filhos da miséria e da pobreza, a Globo há muito preconiza a caridade pública e o protagonismo de ONGs. Evidentemente, sob a sua espetacular mediação. Não que ela seja contra o uso de recursos públicos na educação. Pelo contrário, a Fundação Roberto Marinho, das Organizações Globo, até que consegue descolar uns trocados junto aos governos, para oferecer os seus antigos telecursos na própria escola pública.

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O problema maior é que a Globo se comporta com projeto próprio de poder, inclusive preconizando uma perspectiva educacional. Revela uma "concepção publicista da opinião pública", como diria o historiador Aloysio de Carvalho. As Organizações Globo atribuem para si a legitimidade para falar pela população, passando por cima dos representantes eleitos e dos partidos políticos. O seu Criança Esperança foi, lá atrás, uma resposta a Brizola e aos seus eleitores. Como aquela "massa" votou "errado", investiu-se a própria Globo no papel de se imiscuir diretamente na pregação por seu projeto "alternativo" de educação e de "salvação" das crianças.

As Organizações Globo, nesses longos anos de governo Sérgio Cabral Filho no Rio de Janeiro, um governo que fechou mais de 200 escolas, raramente criticaram a política educacional do recém ex-governador. Na verdade, a Globo não gosta da educação pública concebida como política de Estado. Não digere essa história de dinheiro público sendo destinado à escola pública. Não entende a educação pública como direito dos cidadãos e dever do Estado. Nesse sentido, quase trinta anos transcorridos, temos aí com o maior alarde e propaganda, atuando nos campos educacional e dos direitos da criança e do adolescente, o Criança Esperança e a Fundação Roberto Marinho. Mas, não temos educação em horário integral nas escolas públicas brasileiras. Até quando?

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(1) Ver http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/musicais-e-shows/crianca-esperanca/1986.htm

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