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Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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Crime e castigo, patíbulo e perdão

"Há pouco, entrei em contato com uma história que poderia ter saído da pena de Sófocles, Shakespeare ou Dostoiévski.", escreve Vassoler

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Há pouco, entrei em contato com uma história que poderia ter saído da pena de Sófocles, Shakespeare ou Dostoiévski. 

Numa importante capital brasileira, o jovem Válter - chamemo-lo assim - dirige embriagado. 

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À esquina da rua da Reconciliação, que desemboca na avenida Harmonia, uma das mais movimentadas da cidade, o engenheiro Fausto, a dentista Margarete, sua esposa, as crianças Teodoro e Angélica, filhos do casal, e a babá Madalena aguardam a abertura do semáforo para poderem atravessar a Harmonia. 

Súbito, o carro de Válter, desgovernado, os atropela. 

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Fausto e Angélica ficam gravemente feridos.

Margarete e Teodoro morrem na hora. 

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Como Fausto e Angélica, Madalena é levada para o hospital com ferimentos graves.

Fausto e Angélica sobrevivem. Madalena, não. 

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Madalena estava grávida de 6 meses.

As angústias de Fausto, Angélica e Paulo, o marido de Madalena e quase-pai de Pedro, o quase-bebê, renderiam algumas das páginas mais lancinantes de Sófocles, Shakespeare e Dostoiévski. (Por que a tragédia, para além do amor, faz a fogueira da arte crepitar com mais ardor? O fogo que acalenta também precisa incinerar? Nós ansiamos pelas labaredas?)

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A história que chegou até mim, por meio de um vídeo, mostra Válter no banco dos réus. Aos 33 anos, Válter é julgado pelos crimes de “homicídio doloso (isto é, com intenção de matar) e tentativa de homicídio, ambos qualificados por perigo de vida e recurso que impossibilitou a defesa das vítimas”, conforme frisa, com veemência, o promotor. 

Antes do início das interpelações do promotor, Válter, algemado, levanta-se do banco dos réus e se dirige a Fausto e a Paulo, que assistem ao julgamento. 

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- Pelo amor de Deus, eu não queria matar a sua família! Me perdoem, pelo amor de Deus, me perdoem, do fundo do coração, me perdoem! Me matem agora, me matem, pelo amor de Deus, eu mereço morrer! Eu não sou um assassino, eu não queria matar, pelo amor de Deus! Me perdoem, me matem, me perdoem, me matem! 

Diante das súplicas de Válter por perdão e patíbulo, Fausto e Paulo começam a chorar, copiosamente, premidos entre a cruz e a espada. 

Personagem-mor de Sófocles, o rei Édipo fura os próprios olhos, premido pela culpa, ao descobrir que, sem saber, matara o próprio pai e se tornara amante de sua própria mãe. (A peste infinda que despenca sobre a Tebas governada por Édipo equivale a uma maldição dos deuses pela transgressão, mesmo que insciente, do tabu dos tabus.) Se não é possível revogar o parricídio e o incesto, que Édipo se condene a não mais ver a terra que profanou. Se não é possível revogar o parricídio e o incesto, que Édipo se condene a olhar eternamente, sem poder desviar os olhos, para os crimes que cometeu. Ainda que não tenha havido consciência - ainda que não tenha havido intenção.

Personagem-mor de Shakespeare, o príncipe Hamlet quer vingar a morte de seu pai, rei da Dinamarca, relacionada a uma trama sórdida de traição e envenenamento urdida por sua mãe, a rainha, e por seu tio, irmão do rei e sucessor ao trono. No desenrolar da peça, a justiça de Hamlet se reverte em justiçamento, pois o príncipe, achando que o tio se escondia atrás de uma cortina, esfaqueia, trágica e inadvertidamente, Polônio, pai de Ofélia, a bem-amada de Hamlet. Premida entre o amor pelo pai Polônio e Hamlet, o amor de sua vida, Ofélia se suicida tragada pelas águas turvas das mágoas. Irmão de Ofélia, Laertes toma para si a tocha da justiça que Hamlet um dia envergara em nome do pai. Se não é possível revogar a traição ao rei da Dinamarca e a morte inadvertida de Polônio, que Hamlet e Laertes, em nome do pai, retirem a venda dos olhos da Justiça e rezem o evangelho segundo talião: olho por olho, dente por dente, filho por filho. Ao fim e ao cabo, cadáveres são as últimas testemunhas da justiça como impossibilidade de perdão. 

Personagem-mor de Dostoiévski, o plebeu Raskólnikov concebe que, “se Deus não existe e tudo é permitido, é possível - ou, pior, é preciso! - matar o ‘Não matarás’. A Revolução Industrial não devolveu à humanidade, entre os escombros cristãos da Idade Média, a chama (as labaredas!) de Prometeu que fornece(m) a luz e o calor do conhecimento? O cientista inglês Charles Darwin não se tornou o legista do criacionismo? Então - assim raciocina Raskólnikov -, por que refrear a vontade diante de quaisquer escrúpulos anacrônicos? É meu - sentencia Raskólnikov - o que eu puder conquistar, custe quem custar”. Eis o mote do crime que leva Raskólnikov a rachar a têmpora da usurária Alióna Ivânovna com um machado. O desdobramento da história nos revela as sete faces do castigo: não apenas a punição judicial do jovem homicida, mas os tormentos daquele que precisa carregar o fardo de ter aspergido sangue alheio em nome de uma ideia - em nome do niilismo, em nome do Nada. 

Antes do início das interpelações do promotor, Válter, algemado, levanta-se do banco dos réus e se dirige a Fausto e a Paulo, que assistem ao julgamento. 

- Pelo amor de Deus, eu não queria matar a sua família! Me perdoem, pelo amor de Deus, me perdoem, do fundo do coração, me perdoem! Me matem agora, me matem, pelo amor de Deus, eu mereço morrer! Eu não sou um assassino, eu não queria matar, pelo amor de Deus! Me perdoem, me matem, me perdoem, me matem! 

Em cada lágrima e em cada clamor de Válter, a culpa e a náusea de Édipo, Hamlet e Raskólnikov se esgueiram, venenosas, como sanguessugas que sugam (ou irrigam?) a vida como culpa aos poucos - como um conta-gotas. 

Consta que Válter tenta (e não mais do que tenta) amordaçar a culpa com heroína. (Será por isso que dizem que a heroína é como cavalgar o dragão?)

As personagens mais sádicas de Sófocles, Shakespeare e Dostoiévski diriam que Válter precisa ser condenado… a viver. 

As personagens mais benevolentes de Sófocles, Shakespeare e Dostoiévski diriam que Válter precisa de perdão… sobretudo para si mesmo. (Os escombros fumegantes de uma casa não nos remetem apenas e tão somente às ruínas, mas a potenciais tijolos e alicerces do futuro.)

- Pelo amor de Deus, eu não queria matar a sua família! Me perdoem, pelo amor de Deus, me perdoem, do fundo do coração, me perdoem! Me matem agora, me matem, pelo amor de Deus, eu mereço morrer! Eu não sou um assassino, eu não queria matar, pelo amor de Deus! Me perdoem, me matem, me perdoem, me matem! 

Flávio Ricardo Vassoler

Canal no YouTube: www.youtube.com/c/FlávioRicardoVassoler

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