Crônicas da pobreza urbana
História n. 3 (ou Olhos de pedra)
Eu já havia reparado no rapaz. Suas roupas, seus trejeitos, tudo parecia-me aludir à cultura periférica: os cabelos crespos organizados em trancinhas, correntes no pescoço, camisetas de times americanos de basquete. Pele parda. Faltava-lhe um dos dentes da frente.
Ele me olhava com um olhar duro. Não havia outros motivos que não a condição de ser eu um dos chefes.
Tinha aparecido de súbito na empresa, o que era relativamente comum: integrava a cooperativa de trabalhadores terceirizados -, os funcionários que trabalhavam nas condições mais precárias.
***
Naquela tarde, mais uma vez, eu experimentei o olhar duro do rapaz. Encerrava o meu expediente e, não me recordo bem por que, formaram-se na área de operações duas filas que se moviam em sentidos contrários para o início do novo turno; talvez uma se dirigisse à área de carregamento enquanto a outra se destinasse ao vestiário. O rapaz de olhar duro avistou então um colega que vinha na fila contrária e, no curto instante em que estiveram perto um do outro, disse:
“Bah, mataram meu irmão, cara!”
A fila seguiu. Os colegas se distanciaram. Não pude ouvir se o outro rapaz chegou a dizer alguma coisa.
Voltado para trás, o jovem apontava o pequeno aparelho de celular – de onde certamente lhe chegara a notícia - e continuava buscando com os olhos o outro, que se afastava no contrafluxo da fila oposta.
“Tô mal, cara, mataram meu irmão! Me avisaram agora! Mataram meu irmão!”.
Não havia choro, não havia drama, só a dureza de sempre.
Eu precisava ir embora.
O rapaz subiu para a área de operações para começar o seu turno de trabalho.
***
Hipógrafe:
Boa parte das pessoas que eu conheço que abrem seus votos para bolsonaro nunca ganharam salário-mínimo.
Muitos deles sequer tiveram que trabalhar ao lado de pessoas que ganham salários-mínimos e moram em periferias, não raro em condições de grande vulnerabilidade.
Muitos deles nunca tiveram um chefe... (há até quem não tenha carteira de trabalho...).
A maioria nunca experimentou o medo de não saber se teria dinheiro no fim do mês para pagar o aluguel, nunca precisou ter medo de ser despejado (se ficar sem dinheiro para pagar o aluguel da minha casa, eu sou excluído do grupo dos “cidadãos de bem”?).
Eu nunca suportei a ganância, a botina do capital no pescoço de quem nasceu sem nada. Por isso eu luto pela eleição de Luiz Inácio Lula da Silva.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

