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Fábio Leal

Doutor em Letras, desenvolve trabalho de pesquisa sobre a obra do escritor mineiro João Guimarães Rosa. Atua há oito anos como professor do ensino superior

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Crônicas da pobreza urbana: História n. 1

ou Sobre trabalho, luto e os filhos dos repolhos

Devíamos andar por volta de 2010. Com muito trabalho eu havia conseguido reverter a condição de desprestígio que o meu departamento enfrentava diante dos outros setores da empresa e já começava mesmo a conquistar o respeito e até a admiração dos colegas de outros departamentos.

Naquela manhã, o jovem gerente do setor de operações havia entrado na minha sala para conversar. Trabalhávamos dentro de uma câmara fria e a minha sala era a única que contava com o que parecia um luxo naquele lugar: uma cafeteira elétrica. Ele estava falante (antes não era assim), demonstrava uma gentileza tacanha, artificial. Eu percebia aquilo claramente e, embora tenha pavor de qualquer tipo de adulação, tentei deixá-lo bastante à vontade: era tempo de construir relações de confiança, de consolidar a cooperação mútua. O rapaz queria café: eu o servi. Ele falava, ria; eu concordava, correspondia comedido ao seu riso. Foi quando se abriu a porta e o rapazinho entrou na sala...

***

Era um rapazinho magro, pele parda. Tinha uma atitude servil, assustada, os cabelos crespos e longos presos em um estranho rabo de cavalo, sempre oleoso. O jovem funcionário que entrou na sala estendia uma folha de papel para o gerente que de súbito se mostrou agitado: seu riso bobo havia sumido -, agora ele estava exasperado, respondia com dureza ao rapaz que continuava lhe estendendo a folha e eu não conseguia entender nada. 

“Você tinha que ter vindo trabalhar!” – bradou o gerente, já alterado.

O rapaz, assustado, insistia em tentar entregar o papel. O chefe não pegava. Eu, que assistia à cena sem entender nada, ainda não havia me dado conta de que aquele documento era um atestado de óbito.

“Mas mataram o meu irmão!” – falou o rapazinho. E então eu entendi tudo.

“Mas você tinha que ter vindo trabalhar!” – continuou o gerente – “O que você está pensando? Todo mundo aqui também tem família! Ninguém nasceu de um repolho!”.

Foi duro ver a metamorfose do capataz: o homem que um minuto antes sorria de pernas cruzadas e falava bobagens já havia tomado na mão o chicote. Não consegui olhar nos olhos do rapaz, submisso, que reclamava o direito ao luto pelo irmão assassinado. Também não pude mais suportar olhar para a cara do gerente (não mais naquele dia). Dei as costas, saí da minha sala. Não sei se o homem pegou o atestado de óbito. Deixei o capataz tomando seu café. 

***

Hipógrafe:

Boa parte das pessoas que eu conheço que abrem seus votos para bolsonaro nunca ganharam salário-mínimo.

Muitos deles sequer tiveram que trabalhar ao lado de pessoas que ganham salários-mínimos e moram em periferias, não raro em condições de grande vulnerabilidade.

Muitos deles nunca tiveram um chefe... (há até quem não tenha carteira de trabalho...).

A maioria nunca experimentou o medo de não saber se teria dinheiro no fim do mês para pagar o aluguel, nunca precisou ter medo de ser despejado (se ficar sem dinheiro para pagar o aluguel da minha casa, eu sou excluído do grupo dos “cidadãos de bem”?).

Eu nunca suportei a ganância, a botina do capital no pescoço de quem nasceu sem nada. Por isso eu luto pela eleição de Luiz Inácio Lula da Silva.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.