Crônicas da pobreza urbana
História n. 4 (ou O resto é só o resto)
Ele era alto e magro.
Muito magro.
Muito magro, mesmo.
Tinha tatuagens feitas a agulha hipodérmica e tinta de caneta esferográfica espalhadas pelos braços, pelo pescoço, pela parte do peito que se mostrava pela gola relaxada da camisa. Tatuagens malfeitas, feias, algo agressivas.
Chegou em uma das levas de funcionários terceirizados. Meteu medo nas primeiras pessoas da empresa com que teve contato, mas fui logo conversar com ele. Falou-me seu nome. Mais tarde, porém, eu ouviria pelo galpão da firma o apelido que fazia referência à sua magreza extrema repetido pela boca de seus colegas. Aquele cara, contudo, não passaria despercebido por muito tempo...
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Aquele cara não passaria despercebido, pois eu nunca mais encontrei outro funcionário que trabalhasse tanto quanto ele, com tão boa vontade, com tanta inteligência e com tanta precisão: eu podia entregar a ele as piores tarefas e ficar tranquilo, com a certeza de que ele faria tudo com exatidão. E não era só isso: além de carregar e separar caixas, ele se sujeitou - sem que ninguém pedisse! - ao indigno trabalho de limpar o banheiro emporcalhado por dezenas de homens (o que incluía os diretores que desfilavam seus jeans importados e sapatênis de camurça). Preciso, aqui, ser mais exato: a empresa dispunha de uma equipe de limpeza, equipe essa que se recusava a limpar o banheiro dos homens. As condições do banheiro, inclusive, eram assunto recorrente nas rodas de conversa: como pode uma empresa rica nos sujeitar a um banheiro tão imundo? – indagavam os próprios usuários que contribuíam para o incremento da imundície. Mas no tempo em que aquele cara alto, magro, coberto de tatuagens malfeitas andou por lá, o banheiro se manteve limpo. Desde o seu primeiro dia no trabalho. Todos os dias.
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Os diretores, que desfilavam jeans importados, sapatênis de camurça e camisas de grife, viram-se constrangidos a tolerar aquele cara estranho: haviam conseguido novos clientes a quem precisavam agradar, mas os funcionários erravam grosseiramente e envergonhavam os diretores. Aquele cara, por sua vez, não errava nunca. Além de tudo, era rápido, caprichoso, eficiente.
Mas esse cara tem uma pinta de bandido... – diziam, enojados, os diretores que rescendiam perfumes importados. Os clientes, contudo, não poderiam ser desagradados: entregavam, portanto, os seus pedidos ao cara com pinta de bandido.
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Disposto, rápido, eficiente. Além disso, aquele cara estranho era assíduo e pontual, o que, todos sabiam, não era pouca coisa. O expediente, na firma, começava às 5h da madrugada, muito antes do horário em que o transporte público começava a funcionar. O acesso era péssimo. Os diretores, dos jeans importados e dos sapatênis de camurça, não estavam preocupados em responder como os empregados cumpririam o horário que eles mesmos propuseram: viam-se obrigados a fazer vistas grossas para atrasos e faltas dos funcionários.
Para cumprir o duro horário de trabalho, aquele cara pedalava uma velha bicicleta preta. Ninguém nunca se preocupou em perguntar quantos quilômetros ele vencia pedalando para estar lá às cinco.
Lembro-me do dia em que ele me disse, coçando as costas, num sestro atarantado, com um riso constrangido: Não sei como eu vou fazer para chegar, agora: não tenho mais bicicleta!
Seu embaraço já dizia tudo.
Te roubaram? – rebati, ao que ele assentiu.
Fiquei envergonhado, como se fosse eu quem o houvesse roubado.
E eles te botaram o revólver? – perguntei. Não, não! – respondeu ele – Eu estava passando pela vila, de madrugada, e um malandro gritou: “Ô, magrão, ô, Magrão, me empresta essa bicicleta aqui, me empresta essa bicicleta aqui, rapidinho!” – e eu “emprestei”, né? Fazer o que?
No dia seguinte, antes das 5h, ele estava a postos para trabalhar.
Ninguém perguntou como.
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Resisti até agora ao ímpeto de referir-me ao cara alto, magro, coberto de tatuagens estranhas como meu amigo. Era, no entanto, assim que eu o tinha. Era assim que passei a tê-lo. Meu amigo.
Tornei-me, assim, um componente importante no delicado equilíbrio de forças que determinaria seu destino dentro da empresa: os diretores, aqueles, achavam que ele se parecia com um bandido, mas sabiam, também, que ele trabalhava muito bem -, sua aparência espantava as pessoas, mas eu era um dos chefes e o aprovava. Mais do que isso, tomava-o como um amigo.
Não foi preciso muito tempo: o novo equilíbrio do complexo jogo de forças fez a balança pender para o meu lado – os diretores, que desfilavam seus jeans importados, suas camisas de grife, que caminhavam sobre macios sapatênis de camurça e recendiam os perfumes importados da moda, tiveram que dar o braço a torcer: aquele cara que tinha pinta de bandido era mesmo bom, garantia a segurança do atendimento dos clientes mais mimados e deveria ser efetivado.
Foi então que os problemas começaram.
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Os primeiros sinais foram sutis, quase indistintos: Fala para ele passar no RH para entregar os documentos! -, gritava para mim a menina do administrativo. Pode deixar, eu vou falar com ele. No dia seguinte, no galpão de trabalho, o grito se repetiu, acompanhado de uma cara impaciente: Fala com ele para passar lá! Surpresa. Ele disse que ia passar ontem! Vou falar com ele de novo!
Mas ele não passava nunca.
A notícia se espalhou. Todos começaram a especular sobre as razões pelas quais ele resistia a entregar os documentos no RH para ser admitido. Ele não teria os documentos? Seria ele, realmente, quem ele dizia ser? Ou ele apenas não queria assinar o contrato por acreditar ser mais vantajoso trabalhar como terceirizado?
A resposta veio numa manhã de sábado, na primeira das duas únicas vezes em que eu o vi atarantado. Estava agitado, movia os braços de forma atabalhoada: Olha, magrão, eu vou te dar a real... eu vou te dar a real... Contou-me então de um afeto seu que se encontrava recluso, em uma penitenciária, e que as visitas aconteciam apenas aos sábados, em horário de expediente da empresa. Já não me lembro bem como resolvemos as coisas. Acho que consegui não demonstrar surpresa. Acho também que me atrevi a falar pela empresa e disse que estava disposto a liberá-lo para as visitas se fosse essa a condição para tê-lo conosco. Talvez a chantagem velada dos clientes mimados tenha falado mais alto. Já não me lembro mais como o RH se viu com os documentos. Só sei que o meu amigo permaneceu na empresa.
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Os dias que se seguiram à dura confissão se tornaram mais leves. O cara alto, magro, coberto de tatuagens malfeitas já não causava tanto desconforto. Um ou outro, é verdade, insistia, às vezes, “à boca miúda”, na fofoca de que ele guardava uma história oculta. Eles sabiam, contudo, que eu gostava dele e, talvez por isso, as intrigas não prosperassem.
Foi por aqueles dias que ele me falou do irmão: autorizei-o, algumas vezes, a sair mais cedo para acompanhar o parente que se encontrava internado, em estado grave, em um hospital público. Em nossas conversas, espantava-me a condição de abandono em que se encontrava o irmão e por isso facilitei – e mesmo incentivei! – todas as suas visitas. Como poderia alguém chegar à condição de tamanho desalento? Eu ainda não sabia de nada... Foi também em um sábado pela manhã que eu lhe perguntei pela saúde do irmão e ele me respondeu que havia falecido no dia anterior. Contou-me também que só soube da morte do irmão quando chegou para a visita e encontrou o leito vazio. Correu pelo hospital em busca do irmão que já se encaminhava para ser sepultado como indigente.
No cemitério, encontrou o caixão já à beira da cova aberta. Foi só então que descobri que também se faziam enterros assim. Triste cortejo: eram ele, o caixão e o coveiro.
***
Meu amigo esteve resignado com a perda do irmão. Lidava com a morte de forma natural. Parecia ter prática... Eu que não conseguia lidar com a ideia de uma morte em tão completo desalento. A segunda vez em que o vi desconcertado, no entanto, se daria nas mais insólitas circunstâncias.Eu não sei por qual motivo ele me disse que gostava de ler. O assunto, é claro, causou-me grande surpresa e despertou meu interesse. Mas ler o quê? – atrevi-me a perguntar. Ele me respondeu, então, que gostava de ler tudo. Quis saber se esse “tudo” incluía literatura e ele disse que sim. Ousei confessar que era escritor. Fiz mais que isso: disse que lhe daria para ler o romance que eu havia escrito e permanecia na gaveta. A voragem do esquecimento já ameaça minhas memórias, mas acredito que lhe tenha proposto aquela leitura por acreditar que a minha história diria respeito a ele. Imprimi e encadernei cuidadosamente o original. Entreguei-lhe.
Estive, é verdade, ansioso, nos dias que se seguiram, por algum retorno sobre a leitura: será que ele, de fato, leria o meu livro? Não tive coragem de perguntar. Poucos dias depois, vi meu amigo agitado pela segunda vez: ele gesticulava, falava atropeladamente, me dava conselhos -, falava comigo como um pai zeloso que se dirigisse a um filho que se encontrasse com problemas. Falava, gesticulava, e me empurrava de volta o original que eu havia lhe entregado dias antes.
Você leu??? – Perguntei.
Ao que ele assentiu, confirmando.
Eu não pude mesmo entender as razões daquele aconselhamento: haveria ele projetado em mim as mazelas do meu personagem? Ou – só me ocorre isso agora – pôde entrever, nas linhas que eu lhe entreguei, as minhas dores reais, refratadas em uma história inventada?
Vive tua vida, magrão -, dizia ele, agitado – vive tua vida e não dá bola pra ninguém, porque o resto, magrão... o resto é só o resto! – em uma clara alusão ao nome do livro.
Meu livro havia sido lido até então por apenas duas pessoas. Ele permanece na gaveta. Talvez nunca saia de lá. Ninguém nunca mais o leu.
***
Muitas vezes, nos longos anos que já me separam dos fatos desta narrativa, lembrei-me do cara alto, magro, coberto de tatuagens malfeitas que passei a chamar meu amigo. Pergunto-me o que ele andará fazendo. Pergunto-me também, o mais das vezes, se ele ainda estará vivo.
Recentemente pensei tê-lo visto enquanto dirigia pelas avenidas de Porto Alegre. Abandonei o meu compromisso e arrojei-me em uma manobra arriscada para fazer o retorno. Enquanto acelerava e perscrutava as calçadas com os olhos, ensaiava a confissão de como gostava dele, de como me lembrava de tudo, de como desejei reencontrá-lo, mas não pude alcançar o cara magrelo que pedalava sua bicicleta com uma camiseta amarela, igual à que ele vestia na última vez em que me recordava de havê-lo visto. Talvez nem fosse ele.
Vive tua vida, magrão! Vive tua vida e não dá bola pra ninguém, porque o resto é só o resto!
A lembrança do meu amigo resiste à voragem do tempo.
O resto é silêncio.
***
Hipógrafe:
Boa parte das pessoas que eu conheço que abrem seus votos para bolsonaro nunca ganharam salário-mínimo.
Muitos deles sequer tiveram que trabalhar ao lado de pessoas que ganham salários-mínimos e moram em periferias, não raro em condições de grande vulnerabilidade.
Muitos deles nunca tiveram um chefe... (há até quem não tenha carteira de trabalho...).
A maioria nunca experimentou o medo de não saber se teria dinheiro no fim do mês para pagar o aluguel, nunca precisou ter medo de ser despejado (se ficar sem dinheiro para pagar o aluguel da minha casa, eu sou excluído do grupo dos “cidadãos de bem”?).
Eu nunca suportei a ganância, a botina do capital no pescoço de quem nasceu sem nada. Por isso eu luto pela eleição de Luiz Inácio Lula da Silva.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

