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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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Cuidadores invisíveis: a base esquecida do Brasil que envelhece

A figura do cuidador de idosos tornou-se indispensável em milhões de lares brasileiros

Cuidadores invisíveis: a base esquecida do Brasil que envelhece (Foto: Agência Brasil)

Enquanto a população brasileira envelhece em ritmo acelerado, os cuidadores — profissionais essenciais — seguem desvalorizados, mal remunerados e ainda pouco reconhecidos pelas políticas públicas.

O envelhecimento da população brasileira exige atenção urgente aos cuidadores: profissionais essenciais, mas ainda invisíveis e desvalorizados.

O Brasil está envelhecendo — e rápido. Até 2030, segundo o IBGE, a população com 60 anos ou mais superará a de crianças e adolescentes com até 14 anos. Trata-se de uma transição demográfica profunda, silenciosa e que desafia a estrutura de assistência, saúde e convívio familiar tal como a conhecemos. Neste novo cenário, surge uma pergunta inevitável: quem cuida de quem cuida?

A figura do cuidador de idosos tornou-se indispensável em milhões de lares brasileiros. Trata-se de uma profissão relativamente recente, criada pela necessidade de suprir a ausência de redes familiares tradicionais, a longevidade crescente e o avanço das doenças crônicas e degenerativas. Esses profissionais, em sua maioria mulheres, desempenham funções que vão desde o cuidado básico com higiene, mobilidade e alimentação até o suporte emocional e administração de medicamentos. A formação técnica é geralmente feita por meio de cursos de curta duração com fundamentos de enfermagem, primeiros socorros e ética.

Apesar da relevância social, o trabalho dos cuidadores ainda é amplamente precarizado e invisível. No Brasil, a média salarial mensal é de R$ 1.678,15 (US$ 335,63), segundo dados do CAGED. Em comparação, cuidadores ganham nos Estados Unidos cerca de US$ 2.773, na Alemanha US$ 2.500, no Reino Unido US$ 2.000, na França US$ 2.300, no Japão US$ 1.800 e na Austrália US$ 3.000. A disparidade reflete não só diferentes níveis de desenvolvimento econômico, mas também o grau de reconhecimento institucional dessa profissão em cada país.

Do cuidado familiar à política pública - Durante o século XX, o cuidado com idosos era quase exclusivamente atribuído às famílias, em especial às mulheres. Era comum que filhas, noras ou esposas interrompessem suas trajetórias profissionais para se dedicarem integralmente a pais e sogros enfermos ou debilitados. Com o tempo, esse modelo entrou em colapso diante do encolhimento das famílias, da urbanização acelerada e da crescente inserção feminina no mercado de trabalho. Assim, surgiram novas soluções, como casas de repouso — que, em geral, são acessíveis apenas a famílias da classe média alta ou rica —, enquanto a ampla maioria da população ainda depende dos cuidados domésticos e informais.

Até recentemente, os cuidadores atuavam à margem da lei: a profissão existia de fato, mas não de direito. Esse cenário começou a mudar com a aprovação da Lei 15.069/24, sancionada em dezembro de 2024, que cria a Política Nacional de Cuidados. A proposta teve origem no Projeto de Lei 5.791/2019, de autoria da deputada Leandre (PV-PR), com relatoria da deputada Benedita da Silva (PT-RJ). A lei estabelece diretrizes para a valorização e inclusão do cuidado como direito universal e responsabilidade compartilhada entre Estado, sociedade e famílias.

É importante destacar que, embora a lei represente um avanço fundamental, ela ainda não regulamenta plenamente a profissão de cuidador, o que permanece como um próximo passo essencial. Entre os dispositivos previstos estão a promoção da formação continuada, a inserção dos cuidadores nos serviços públicos de saúde e assistência social e a elaboração de um plano nacional para o setor.

Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social, mais de 8 milhões de brasileiros já necessitam de cuidados diários — número que deve dobrar até 2040. Sem políticas públicas consistentes, cuidadores familiares adoecem junto com os entes queridos que assistem, e os profissionais seguem operando em condições frágeis e desiguais.

Envelhecer é também reinventar-se - Esse tema me atravessa de forma pessoal. Em 1970, eu tinha 11 anos e meu avô, 63. Vindo de uma família numerosa, ele era não apenas o grande chefe do nosso clã, mas também o maior líder político da cidade em seu tempo. E, ainda assim, era chamado por todos de “O Velho” — com artigo definido e V maiúsculo. A expressão não era uma gíria carinhosa ou uma brincadeira entre gerações. Era a constatação social do envelhecimento, quase como um atestado de obsolescência.

Hoje, sou eu quem carrega esse número nos documentos: tenho 66 anos. Mas a realidade é muito diferente. Continuo dando aulas na universidade, escrevendo livros e artigos regularmente, viajando com frequência. Embora aposentado desde 2019, sigo no mercado de trabalho, ativo, produtivo e me sentindo cada vez mais criativo, mais lúcido e mais apto a contribuir de forma efetiva para a sociedade.

As mudanças sociais nas últimas décadas foram imensas. A faixa etária acima dos 50 anos tornou-se protagonista. A terceira idade hoje ocupa espaço na vida econômica, familiar e cultural como nunca antes. Em países asiáticos, como Japão e Coreia do Sul, isso sempre foi a norma. Mas no Brasil, essa revolução é recente e impactante. Vemos idosos empreendendo, liderando projetos sociais, ensinando, participando do turismo e até dirigindo aplicativos de transporte.

Essa transformação se deve, em parte, aos avanços da medicina e ao aumento da longevidade, mas principalmente à necessidade econômica. Muitos aposentados voltam ao mercado por perceberem que seus benefícios não cobrem os custos básicos de sobrevivência. Ao mesmo tempo, filhos e netos enfrentam um mercado de trabalho instável, o que leva os mais velhos a se tornarem o esteio da família. Trata-se de uma revolução silenciosa, comparável às grandes transformações tecnológicas do nosso tempo.

Cuidar, hoje, é mais do que um ato de generosidade: é uma função vital para o tecido social. E cuidar de quem cuida é reconhecer que a dignidade começa pelo olhar atento aos que sustentam os mais frágeis. Isso exige políticas públicas estruturadas, respeito institucional e um novo pacto intergeracional. Porque, no fim das contas, todos nós, sem exceção, um dia precisaremos ser cuidados. E, quando esse momento chegar, que o cuidado não seja um improviso — mas uma escolha consciente, coletiva e politicamente sustentada.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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