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Rogério Puerta

Engenheiro agrônomo, atuou por doze anos na Amazônia brasileira em projetos socioambientais. Atuou em assentamentos da reforma agrária no Distrito Federal por dez anos e atualmente vive em São Paulo imerso em paixões inadiáveis: música e literatura. Escreveu diversos livros

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Cultura é elitista?

Vexatório cair de paraquedas em país devastado pela fome e discursar sobre cultura erudita

(Foto: Rodrigo Trompaz)
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"Na hora de ir se manifestar ninguém vai. Ontem foi julgamento do atropelador do ciclista, desta galera superequipada aqui do passeio de bikes ninguém apareceu lá". Assim disse o cicloativista brasiliense morador de quitinete da Asa Sul do projeto de avião da capital Brasília. Estava indignado, saía para passeio ciclístico noturno tradicional da capital federal ao lado de outros ciclistas que se pareciam mais com árvores de Natal sobre duas rodas.

Luzes importadas de leds inteligentes, roupas de tecidos ultramodernos, bicicletas de fibras de carbono, quinze, dezesseis mil reais nas lojas, daí pra cima. Moldaram o hábito da bandidagem local, que se especializou em roubar com violência tais bikes em semáforos semidesertos, como é típico em finais de semana ou feriados na capital federal.

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"Cicloativismo é elitista" sentenciou o frustrado apaixonado por pedalar. "Os caras com grana não usam bike no dia a dia, usam só pra lazer e pra exibir os seus equipamentos. De outro lado o peão mesmo, o operário, que pega a bike pra ir ao trabalho, pra vir das cidades satélites ao centro de Brasília todos os dias, não tem tempo mesmo pra estar presente em manifestações por mais segurança no trânsito e por respeito aos ciclistas".

Um elitismo seletivo. Morador de Brasília funcionário público com salário de vinte mil reais para cima não participa, morre de medo de botar nome em abaixo-assinado.

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Bicicleta, causa ambiental, motivação dada aos que têm tempo para tal. Vexatório cair de paraquedas em país devastado pela fome e discursar sobre o dano que as pastagens para gado fazem ao meio ambiente, fazer proselitismo do veganismo. Veganismo divulgado com paixão onde se come bolacha feita de argila, de terra, ou seja, se come lama assada ao sol para tapear a fome. Ao que tudo indica, ambientalismo é elitista, com muito poucas exceções.

Cultura é elitista, seu acesso amplo, um pouco menos a sua produção. O sujeito desempregado lembra que quando jovem fazia uns artesanatos com arames, pedras coloridas, coisas bonitas, brincos, colares, também recitava poesias. Lembra que tinha habilidade em manejar um alicate de ponta fina, então passou a fazer arte e tentar vendê-la acima de panos coloridos psicodélicos, no chão, nas avenidas mesmo.

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Recitava poesias, próprias e de outros, adorava recitá-las. Arte e cultura. Cultura de rua, repentistas do hip hop que adentram vagões de metrô fazendo ligeiros versos criativos e musicados baseados nos passageiros. Arte e cultura, ou, arte é cultura.

Talvez o acesso à cultura, aí sim, bem mais verificável, o amplo acesso, não a sua produção, mas o amplo acesso seja para alguns mais viável em detrimento de uma maioria populacional escanteada. Maioria de gente potencial consumidora de livros, cineclubes, teatro, museus. Apenas potencial, muitos e muitas ficam estacionadas neste patamar não exequível.

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Domingo na Zona Sul paulistana, de manhã, feira de rua, um agradável ambiente sombreado por árvores frondosas que no pavimento público expulsam para cima o concreto de calçadas prisioneiras, árvores que presenteiam ao ambiente em redor um suave frescor à feira, em sua maioria barracas de frutas e hortaliças. Nas bancas estão os atravessadores, não são os produtores familiares do campo, assim bem mais ocorre em grandes cidades urbanizadas.

Na rua temporariamente interditada da feira de domingo dois sujeitos dialogam em frente a um sebo de livros insistentemente localizado em tímido estabelecimento na mesma rua: "Vendas fracas, ainda mais livro em papel, mesmo aos módicos dez, quinze reais, vende pouco. Olha este pessoal percorrendo as barracas da feira, vão preferir comprar comida ou livro?". Dilema impactante, factual.

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Seguindo a rua da feira, descendo, em um agradável caramanchão de lonas amareladas de barracas de frutas, que logo acima da cabeça dos transeuntes, bem próximas, transmitem uma linda luminosidade alaranjada, seguindo a feira há ao final da rua acesso a uma avenida comercial. Lá os frangos assados expostos aos domingos, rodando em espetos nas tevês de cachorro, cheiram desde longe. Eram 16 reais, subiram aos 20, e agora são 24 reais uns franguinhos minúsculos, galeto, asinha minúscula, asa que é só pele e osso. O frango comum são 35 reais, mais maduro, ficou mais uns dias na granja, 35 reais por enquanto.

Mas então o acesso à cultura dependeria de condição econômica favorável? Afirmar a cultura em si como nababesca, injustiça taxá-la elitista, um generalismo. "Todo lusitano é canhestro". Para eles nós o somos, lemos bem menos livros em um ano. Generalismos. Sabemos o significado de ser culto ou culta, do que seja em essência uma pessoa culta. Os que absorvem cultura ao longo de anos e anos de vivência e comparações, estes e estas o fazem de forma mnemônica, em geral guardam na cabeça várias datas, nomes, fatos inter-relacionados, citações.

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Diz-se a uma pessoa culta no deserto "Morrerá de sede aqui, está condenado" e ela provavelmente bem saberá que a geografia da região é propícia às fontes de água potável em determinados grotões de baixios. Isto saberá mesmo se tal pessoa culta for jogada de supetão em local desconhecido nunca antes visitado.

Diz-se "A cultura de país tal é xenófoba" e o culto bem saberá que não. "Personalidade tal escreveu isto, aquilo, pensou de tal forma em sua época, pensou diferente daquilo que se diz genericamente". Você saberá ser verdade ou não, com sua bagagem adquirida será alguém bem mais difícil de ser iludido ou chantageado.

Perceberá o contexto, fundamental contexto, não as frases soltas pinçadas e escolhidas a dedo. Compreenderá o mundo em que se localiza, seu mundo, suas gentes, o histórico, erros e acertos, caminhos e encruzilhadas, pontes construídas e as quebradas.

É compreensível, não se faz necessário muito esforço mental. O proprietário de quitinetes de seu bairro cobra aos inquilinos, todos trabalhadores braçais migrantes semianalfabetos, um valor combinado do aluguel de acordo com o reajuste da inflação, valor nunca cumprido à risca, sempre majorado. Alguém esperto notará o engodo. Alguém culto o associará à magistral narrativa de romancistas russos que relatavam o mesmo dois séculos atrás em cortiços de terras frias bem distantes.

O mais óbvio. Ocorreu e ainda ocorre quase idêntico. Há pouco mais de um ano o seu time de futebol do coração recebeu punição de órgão correlato fiscalizador. Não poderia haver novo distúrbio em evento considerado local, durante as partidas de futebol, do contrário haveria uma punição ainda mais severa, comprometedora. Torcedor de time rival infiltrado na torcida que você ama inicia um tumulto generalizado, dos grandes, com violência, o seu time do coração no dia seguinte severamente punido, rebaixado de categoria.

Um infiltrado. Assim ocorreu historicamente, Hitler e dezenas de outros usaram deste nítido subterfúgio. Alguém esperto notará o engodo, alguém culto o associará à historiografia e eventualmente à passagem emblemática de cena do clássico cinematográfico tal da época tal, com os atores e atrizes tais e o diretor laureado, polêmico e histriônico tal.

Cultura cinematográfica e cultura musical e o acesso a estas. Explícito, escancarado, nas ruas de qualquer cidade de qualquer país com fração populacional em depleção econômica, lá exibido acima de pano ao chão da avenida o título de filme ou de CD que você tanto procurava, baixa qualidade, baixo preço, portanto acessível. Pronto, feito, você teve acesso à cultura, a alguma fração de cultura ao menos.

Recorrentes no planeta Terra os eventos em que se promovem a queima de livros em fogueiras públicas espetaculares e ruidosas, ao lado delas gente discursando indignada, soltando enormes perdigotos tóxicos em oratória agressiva, olhos esbugalhados, gente detentora das verdades absolutas da Humanidade, gente cheia de supostas razões e justificativas. Interessará a um governo déspota temporário que a sua Nação correlata seja de fato culta e informada?

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