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Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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Da guerra sem ódio

"No princípio era a guerra dos corpos que faziam sofrer. No princípio era a guerra dos corpos que se viam sofrendo"

(Foto: Luanna Falcão)
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No princípio era a guerra – no princípio era o pathos. 

Crânios rachados, rostos dilacerados, lábios rasgados, dorsos prostrados, murros, chutes e mordidas, gritos e uivos, choro e ranger dos cacos de dentes. 

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No princípio era a violência dos corpos contíguos, o horror dos corpos-cúmplices. 

A guerra primordial – a guerra pelas presas, a guerra por comida, a guerra aguilhoada ao estômago – demarca seu território com urina e o expande com sangue e sêmen. O soco do hominídeo estraçalha a mandíbula do inimigo, a mandíbula do inimigo incha o punho do hominídeo e lhe quebra as falanges. 

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No princípio era a guerra dos corpos que faziam sofrer. 

No princípio era a guerra dos corpos que se viam sofrendo. 

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O urro dos mais fortes cala com sua pata de elefante o gemido dos corpos frágeis como gravetos. A barbaridade da guerra primordial é a barbaridade da guerra que depara, aqui e agora, com a ejaculação de sua violência corpórea. Os guerreiros se tocam, os guerreiros se cospem, os guerreiros se rasgam, os guerreiros se socam, os guerreiros se mordem, os guerreiros se chutam. A guerra primordial por comida enreda os corpos dos guerreiros com o cordão umbilical da mãe-terra. 

No princípio de 2001: uma odisseia no espaço, filme dirigido por Stanley Kubrick, as hordas de hominídeos, antes de se engalfinharem no corpo a corpo da guerra primordial, urram umas contra as outras para inocular coragem quadrúpede ao medo quase bípede dos ancestrais do homo sapiens. 

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Milênios e milênios depois, o ruflar de tambores e o berro das trombetas da guerra clássica calariam fundo nos soldados que, se quisessem sobreviver à carnificina das batalhas, precisariam reencarnar a ira ancestral dos hominídeos.

Mas eis que a câmera de Kubrick, subitamente, dá um close num hominídeo altivo após a batalha – o provável líder de sua horda. 

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Arquimedes – chamemo-lo assim – está diante da carcaça de um bisão. O hominídeo vai remexendo nos ossos a esmo, até que sua mão peluda soergue um possível fêmur. 

Arquimedes raspa o osso na cara, começa a cheirá-lo e a mordê-lo como que a ver se encontra um naco de carne e logo passa a batucar o fêmur nos demais ossos. Os primeiros golpes do hominídeo com o fêmur são trêmulos e experimentais, quase singelos. Logo Arquimedes se dá conta de que, após içar o osso com força e rapidez, os golpes com o fêmur conseguem estraçalhar as costelas e até mesmo o crânio do bisão. (A trilha sonora frenética de Kubrick revela ao espectador que estamos diante da aurora de um novo ser – o prenúncio do homo sapiens está para ser parido pelo hominídeo.) 

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O fêmur de Arquimedes, extensão de seu corpo, extensão de sua fome, é o prenúncio da clava contra as hordas inimigas. O fêmur de Arquimedes funda a arte da guerra para além do corpo a corpo da guerra primordial. (O fêmur de Arquimedes corta o cordão umbilical que enredava os corpos dos guerreiros à mãe-terra.) 

Com o fêmur de Arquimedes, o hominídeo expele o homo sapiens, o primeiro ser que, sem sofrer, pode fazer sofrer. 

Com o fêmur de Arquimedes, o hominídeo expele o humano, o primeiro ser que, sem sofrer, quer fazer sofrer. 

O fêmur de Arquimedes dá à luz o tacape de pedra lascada. 

O fêmur de Arquimedes dá à luz o tacape de pedra polida. 

O fêmur de Arquimedes dá à luz a funda de que Davi lança mão para derrubar o gigante Golias. 

O fêmur de Arquimedes e suas metamorfoses decretam a igualdade dos humanos perante a morte. A partir de agora, do faraó ao último dos escravos, todos podem ser assassinados. (O fêmur de Arquimedes é o descobridor do calcanhar de Aquiles.)

Com o arco-e-flecha, Arquimedes já não precisa ouvir a mãe suplicar pela vida de seu bebê. (Os corpos em guerra parecem definitivamente apartados.) O arqueiro Arquimedes já não precisa encarar o olhar agônico de suas vítimas. Ele pode se esconder para matar. Se o fêmur requer o golpe final, o arqueiro Arquimedes já não precisa disparar a flecha de misericórdia. 

Não foi por acaso que Stanley Kubrick fez com que o hominídeo, no auge de seu êxtase com o osso que condenou os humanos à maioridade da guerra, arremessasse sua alavanca para os céus até que o fêmur de Arquimedes entrasse em órbita e se transformasse, com o abracadabra da aceleração cinematográfica do tempo histórico, em uma estação espacial. É como se Kubrick insinuasse que, se não há uma história universal que vai do hominídeo à noção emancipatória de humanidade, certamente há uma história da guerra que vai do fêmur de Arquimedes à bomba atômica. 

A pólvora e o canhão transformam Arquimedes em conquistador dos sete mares. Arquimedes dá de ombros quando os incas aguerridos, ao invés de atacarem os cavaleiros da Coroa, cortam a cabeça dos cavalos espanhóis como se os invasores (e) assassinos não fossem os centauros da colonização. A garrucha, tataraneta dileta do arco e flecha, cinde ainda mais a distância entre Caim e Abel. A espingarda. O revólver. [Portátil e de bolso (anatômico), o revólver se funde ao corpo como a verdadeira restituição do fêmur a Arquimedes.] A metralhadora. A bazuca. O míssil. O míssil intercontinental. A assinatura e o go ahead do mandatário. 

A guerra primordial era bárbara, sangrenta e odiosa – porque era humana. (No princípio era a guerra – no princípio era o pathos.) 

Na guerra de altíssima tecnologia, a morte é cirúrgica – civilizados, os manuais de administração dos vencedores há muito não enviam (ou dizem ser demasiado custoso enviar) cossacos para o campo de batalha para pilhar, violar e incendiar (não necessariamente nessa ordem) o corpo da derrota. 

Na guerra de altíssima tecnologia – a guerra com a letalidade milimétrica dos alvos via satélite –, a morte, cirúrgica, se transforma em collateral damage. 

A guerra high-tech é civilizada, asséptica e impessoal – como não há sobreviventes (como a morte é instantânea), não há choro e ranger de dentes. 

A guerra high-tech aposenta os soldados. 

Os franco-atiradores da novíssima guerra – hackers hermeticamente encalacrados pelo Estado – julgariam bizarra a experiência estética de Napoleão nos campos de batalha. Para o imperador francês, a geometria harmônica dos batalhões antes dos confrontos, o ar saturado de ímpeto e medo, o aríete dos gritos de guerra e a ira das baionetas em riste transformavam o general em um verdadeiro maestro. [Pouco mais de um século depois de Austerlitz, o futurista (e fascista) Filippo Tommaso Marinetti comporia odes ao odor de decomposição dos campos de batalha, à tempestade de aço e escombros dos bombardeios e às espirais de fumaça a asfixiar as nuvens.] 

Para os franco-atiradores da novíssima guerra, Napoleão e Marinetti não passam de diletantes. Afinal, que é a carnificina da guerra real diante do hiper-realismo dos jogos de video game via satélite? Afinal, Napoleão e Marinetti precisavam de lunetas e binóculos pré-históricos para espreitar a morte, ao passo que a guerra high-tech coloca à disposição de seus franco-atiradores o zoom e o replay microscópicos.

É quando chegamos à guerra sem ódio. A guerra dos drones que sequer desconfiam de que o fêmur de Arquimedes faz parte de esqueletos que respiram. 

Na fronteira dos Estados Unidos Mexicanos com os Estados Unidos da América, já não é preciso erigir cercas encimadas por arame farpado de alta tensão. Bastam os onipresentes e oniscientes sensores de calor. Ao menor sinal térmicos, drones silenciam a esperança. 

Não, o drone não está para além do bem e do mal. O drone não odeia. O drone não faz a guerra. O drone apenas funciona. O drone apenas trabalha.

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