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Roberto Bueno

Professor universitário, doutor em Filosofia do Direito (UFPR) e mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC)

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Dallagnol agiu à margem da lei brasileira

"A normalização da transgressão ao direito por parte de atores jurídicos minou o sempre escorregadio terreno das liberdades", diz o professor Roberto Bueno, que condena sua colaboração com o FBI

Procurador Deltan Dallagnol, procurador Vladimir Aras e FBI (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil | ANPR | Reuters)
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Neste dia 01.07.2020 a Agência Pública e o The Intercept Brasil entregaram ao conhecimento público o conteúdo de conversações entre os Procuradores da República Deltan Martinazzo Dallagnol e Vladimir Aras, então responsável pela Secretaria de Cooperação Internacional (SCI) da Procuradoria-Geral da República (PGR) (SCI/ PGR), que contém supostas ilegalidades na operação Lava Jato. Neste texto analisaremos trechos de conversa mantida entre os Procuradores da República, cujo teor sugere que Dallagnol poderia ter agido contrariamente às normas legais, tendo sido ele, ironicamente, ator que agiu tecnicamente para implodir grandes empreiteiras nacionais para, logo, pavimentar a tortuosa via conducente ao atual Estado de exceção exemplificado na incapacidade do sistema em oferecer resposta eficaz, dentre outras graves situações, à sucessão de crimes de responsabilidade em tese praticadas pela Presidência da República.

A informação é de que Deltan Dallagnol teria apresentado pedido de extradição de suspeito da Lava Jato diretamente às autoridades norte-americanas competentes no dia 11.02.2016, endereçando-o ao Escritório de Assuntos Internacionais (OIA), e também enviando tal documento por meio de correspondência eletrônica a Vladimir Aras (SCI/ PGR), quando, em realidade, a normatividade em viro impõe o encaminhamento pela via do Ministério da Justiça (MJ) à autoridade competente norte-americana. Na sequência da mensagem eletrônica seria mantida conversação entre Dallagnol e Aras em que o segundo realizaria “ponderações” sobre a legalidade das escolhas realizadas pela Lava Jato no assunto em questão. Dallagnol recebeu de Aras “ponderações” que o “estimulavam” a realizar o procedimento pelas vias legais, vale dizer, pelo Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça (DEEST).

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Aras ponderou que a opção de Dallagnol de encaminhar o pedido de extradição diretamente aos EUA era criticável em face de argumento utilitário, posto que o objetivo de Dallagnol de eludir o controle do Poder Executivo não seria cumprido dado que as autoridades norte-americanas, como de hábito nestes casos, iriam informar aos seus homólogos brasileiros o teor do pedido de extradição, jogando por terra os esforços de ocultamento do pedido. Recordava ainda a Dallagnol que as mensagens eletrônicas trocadas entre ambos estavam sujeitas a escrutínio em face de ordem judicial e, por conseguinte, malgrado reconhecer a “boa-fé” do colega e seus sinceros propósitos, insistia em realizar os procedimentos “by the book”, ou seja, e o diria com todas as letras “respeitando a lei”, como se necessário fosse insistir tantas vezes em que um Procurador mantenha a sua conduta profissional nos estritos limites da legalidade.

Dallagnol resistiu aos argumentos de Aras e aparentando gentilezas gremiais, agradeceu a “Vlad” por suas “ponderações”, mas concluiria que “Conversamos aqui e entendemos que não vale o risco de passar pelo executivo, nesse caso concreto. Registra pros seus anais caso um dia vá brigar pela função de autoridade central rs. E registra que a própria PF foi a primeira a dizer que não confia e preferia não fazer rs”. Insuficiente o desprezo pela estrita legalidade a qual toda autoridade está submetida, fazia acompanhar o deboche, incluído na alma da arrogância daqueles que acreditam deter o poder divino ainda quando habitem as profundezas de sombras que os adjetivos não alcançam.

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É elucidativo que os juízos pessoais de conveniência atropelem a submissão à estrita legalidade, a qual os servidores públicos, sobretudo em posição de atores jurídicos, devem permanecer adstritos. Foram desconsideradas as sucessivas advertências apresentadas desde distintos ângulos por Aras a Dallagnol como, por exemplo, ao mobilizar antecedentes exitosos em matéria similar: “Já tivemos casos difíceis, que foram conduzidos com êxito”. Chama a atenção para a obstinação conducente para além do campo da estrita legalidade, sem que Dallagnol aparente reconhecer qualquer freio de contenção as suas ações e decisões, respondendo em tom de gratidão: “Obrigado, Vlad, mas entendemos com a PF que neste caso não é conveniente passar algo pelo executivo”. Em face do argumento da “conveniência” aduzido por Dallagnol, a posição funcional de responsável pela Secretaria de Cooperação Internacional da PGR impunha a tomada de posição no sentido de superar a postura de mero aconselhamento para atuar nos termos da legislação em vigor, quando flagrar ação ilegal implica imediata reação sob pena de responder por prevaricação.

A resistência de Dallagnol às “ponderações” de Aras explicitava uma estranha segurança de inversão de posição funcional, cuja avaliação era a de não ser alcançado pela legislação em vigor, quaisquer que fossem os seus atos. O desprezo pela legalidade restou manifesto no trecho citado acima quando Dallagnol elude seguir a norma legal em face de juízo de “conveniência”, desenhando assim perfeitamente o Estado de exceção. A isto Aras respondeu objetiva e certeiramente: “A questão não é de conveniência. É de legalidade, Delta. O tratado tem força de lei federal ordinária e atribui ao MJ [Ministério da Justiça] a intermediação. Estamos negociando com o Senado um caminho específico para os casos do MPF. Por ora, precisamos observar as regras vigentes”. Como se depreende, manter a conduta aos estritos limites da legalidade era compreendido no limiar de uma concessão por parte de poder irrestrito às formalidades da legislação criada pelo poder político competente, em suma, de um poder de exceção.

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Neste marco das ações do Procurador da República restava manifesto que o Poder Legislativo e as regras democráticas seriam consideradas, pode deduzir-se, tão somente segundo o seu juízo de “conveniência”, que as normas jurídicas criadas pelo poder democrático competente, o Legislativo, seriam utilizadas conforme servissem ou não para cumprir os fins propostos pelo Procurador e a Lava Jato em especial que, como saberíamos posteriormente, tinham horizonte político e político-partidário. Pergunta que não pode ser calada é sobre o sentido do conceito de legalidade para Dallagnol quando na prática estava a balizar suas ações tão somente pelos resultados ou “conveniências” sob o signo do desprezo pelos meios legais aos quais por dever de ofício deveria submeter-se?

Quando Dallagnol ouviu de Aras que “A questão não é de conveniência. É de legalidade, Delta”, foi desarmado de provável defesa no sentido de ter incorrido em “erro técnico”, como qualquer poderia tê-lo feito. Mas esta já não é alternativa para Dallagnol dada a clareza do alerta de Aras que, a rigor, deveria ter transitado e exercido as plenas atribuições funcionais em detrimento do silêncio complacente. Este cenário aponta, em tese, para ações de Dallagnol que configuram a transgressão de competência funcional e normas constitucionais, em ofensa direta a hierarquia e autoridade política democraticamente eleita encarnada na Presidência da República. Dallagnol preferiu contorná-la, malgrado os expressos dispositivos legais em face de, declaradamente, “não confiar nela”, como se houvesse sido confiado à Procuradoria mandato para avaliar quais normas devem ou não ser seguidas, quais autoridades merecem ou não ser respeitadas.

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A informação do diálogo agora trazido à luz pela publicação da Agência Pública e do The Intercept Brasil é recorte pretérito de violações legais por parte de importantes autoridades que em diversas instâncias vieram apoiando a quebra das instituições e apontando para o horizonte evolutivo de quadro de deterioração institucional já desde momento precedente ao golpe de Estado de 2016. A informação trazida à tona é elucidativa da forma preocupante e alheia à técnica como o direito brasileiro vem sendo interpretado e aplicado, algo que, agora observamos na prática, inviabiliza o Estado democrático de direito.

A normalização da transgressão ao direito por parte de atores jurídicos minou o sempre escorregadio terreno das liberdades. Trata-se de prática adotada em diversas oportunidades e instâncias por setores togados que, finalmente, pavimentou a via para que alcançássemos celeremente o presente estágio de deterioração já sob regime militar, e colocando o país no limiar da instauração de segunda etapa marcada pelo fechamento absoluto. Aqui quando as portas do Estado de exceção são abertas e por elas passamos, então, tudo o que saberemos nesta outra dimensão política se esgota na incerteza sobre se e quando será recuperada a normalidade, carregando como certeza apenas que o caminho será extremamente duro, e disto já temos prova no Brasil, que a cada dia conta os seus mortos às dezenas de milhares sob a indiferença do poder fardado.

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Nota: Não é possível falar sobre qualquer assunto no Brasil sem recordar que diariamente são postas a perder cerca de 1.300 vidas à razão crescente, como se se tratasse de bens fungíveis, todas vitimadas pela Covid-19, avançando rumo a perdermos uma vida por minuto. Nas fronteiras do reino da desídia do poder político central muitas vidas inocentes que poderiam ser poupadas são expostas à morte e as suas famílias ao flagelo do sofrimento desnecessário. Enquanto tudo isto durar temos a obrigação moral de recordar e alertar diuturnamente para este genocídio do povo brasileiro conduzido pela elite e consentido pelas instituições que hesitam, titubeiam, calam e, dentre todos, os que se omitem colaboram decisivamente para o resultado genocida perpetrado. A responsabilidade é individual, mas também coletiva, e a história cobrará, inclusive, de quem escreveu e de quem lê este texto enquanto eram abandonadas à morte, aproximadamente, outras sete vidas.

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