De Antônio Vieira a Alessandro Vieira, quatro séculos em conflito
Sob o PL Antifacção, infiltrados passam a integrar operações secretas e penas chegam a 120 anos
No Senado Federal, esta terça-feira amanheceu com cheiro de balanço histórico. Não daqueles balanços triunfais,mas dos momentos em que a República se encara no espelho, reconhece suas rachaduras e, ainda assim, tenta recompor a postura antes de seguir adiante.
Na Comissão de Constituição e Justiça, o senador Alessandro Vieira apresentou o relatório do PL Antifacção, versão robusta e tensa da velha crença de que o crime organizado se derrota com força bruta, nunca com inteligência de Estado. A cena não foi apenas jurídica: foi simbólica.
Foram 79 páginas de relatório e voto, acompanhadas de um substitutivo completo, reescrevendo o texto embaralhado que veio da Câmara. Só isso já revela o estado das coisas: o projeto nasceu fragmentado, atravessou um labirinto legislativo e chegou ao Senado tentando parecer reforma sólida, mas carregando remendos de sobra.
Mesmo assim, o dia deixou evidente que a discussão já ultrapassou o campo penal. O que estava em jogo era a silhueta do Estado brasileiro — suas crenças, seus medos e sua incapacidade histórica de lidar com os territórios que perdeu.
O centro do relatório é o novo tipo penal de “facção criminosa”, agora qualificado na Lei de Organizações Criminosas. O texto estabelece controle territorial, atuação interestadual e uso de violência organizada como elementos estruturantes, definindo pena-base entre 15 e 30 anos. É a confissão tardia de que facções deixaram de ser grupos e se tornaram poderes paralelos.
O parecer também equipara milícias a facções, reconhecendo que ambas funcionam como engrenagens criminosas que ocupam espaços que o Estado abandonou. É um reconhecimento duro: parte do território nacional se tornou laboratório para soberanias clandestinas.
As penas podem ultrapassar 120 anos, principalmente para lideranças, que só progredirão após cumprir 85% do total. É a tentativa de erguer um muro penal para compensar a ausência de muros institucionais, falha histórica da República. Dura, porém insuficiente.
O relatório reorganiza medidas assecuratórias, reescreve trechos do CPP e mantém a Ação Civil de Perdimento apenas para hipóteses em que não houver confisco penal possível, evitando dupla punição pelo mesmo fato (o chamado “bis in idem” no Direito). Ainda assim, permanece o confisco imprescritível de bens ilícitos — ferramenta poderosa, que exige o que ainda não temos de forma sólida: provas consistentes, rastros transparentes, investigação qualificada.
No campo das investigações, o parecer abre portas largas. Autoriza infiltrações com identidades fictícias, inclusive empresas de fachada desenhadas para operações clandestinas. Permite que gravações ambientais feitas por um interlocutor sirvam de prova de acusação.
Além disso, reforça o acesso de delegados e membros do Ministério Público aos relatórios do Coaf, aprofundando o monitoramento financeiro. O salto investigativo é expressivo, mas o salto equivalente em salvaguardas não veio. E é desse descompasso que nasce o risco.
Na seara constitucional, Vieira consertou destroços deixados pela Câmara. Rejeitou equiparação de facções a terrorismo, evitando um atalho perigoso. Retirou a vedação ao auxílio-reclusão e ao voto, preservando direitos de matriz constitucional que não se apagam por lei ordinária.
Também negou execução penal após condenação em primeira instância e descartou a ideia de preso pagar o Estado, proposta que exigiria reforma mais ampla. Restabeleceu o Tribunal do Júri em homicídios ligados ao crime organizado, mas fortaleceu a proteção aos jurados, hoje vulneráveis em regiões dominadas por facções.
Nada, porém, provocou tanto assombro quanto a CIDE-Bets — contribuição sobre apostas eletrônicas apresentada como fonte de até R$ 30 bilhões por ano para financiar o combate ao crime. Uma cifra celebrada antes mesmo de se saber se é factível, sustentável ou juridicamente estável.
No capítulo dos riscos, o relatório admite o mais evidente: a pressão sobre um sistema prisional já saturado. A soma de penas longas, progressão rígida e novos tipos penais é receita pronta para agravar o hiperencarceramento. E sabemos quem entra primeiro nesse funil.
Outro ponto sensível é a definição de “controle territorial”. Onde termina a sociabilidade comunitária e começa a tipificação penal? Em regiões omitidas pelo Estado, essa fronteira é turva. E o país, sempre que falha em entender um fenômeno, tende a tratá-lo como ameaça — prática que já custou vidas e reputações.
É nesse debate sobre recuperabilidade ou condenação definitiva que a História impõe uma dobra. Dois Vieiras, quatro séculos de distância, narram essa disputa moral com precisão quase cruel.
1655: Padre Antônio Vieira sobe ao púlpito, abre Lucas 23:43 e cita a frase que, no latim da Vulgata — “Hodie mecum eris in paradiso” — significa: “Hoje estarás comigo no Paraíso.” Cristo concede ao bom ladrão o perdão imediato, bastando uma súplica sincera. Para o jesuíta, ninguém estava irremediavelmente perdido.
2025: Senador Alessandro Vieira apresenta um relatório que prevê penas que podem chegar a 120 anos, progressão mínima e indulto interditado para chefes de facções. A porta estreita do perdão, que o sermão de quatro séculos atrás mantinha aberta, agora é selada por camadas de legislação penal.
Entre um Vieira e outro, o país substituiu a gramática da graça pela engenharia da punição. Um proclamava que a redenção alcança até o condenado da última hora.
O outro sustenta que o crime organizado, enquanto estrutura, não volta ao convívio civilizado. Hoje o bom ladrão não pede perdão — administra territórios, impõe regras, financia campanhas.
E, entre Estado e crime, acabou a graça.
Outros pontos seguem pedindo vigilância: o poder ampliado de investigação financeira, o confisco civil, a promessa bilionária das apostas. Nenhum deles vem acompanhado de mecanismos robustos de controle ou transparência.
No fim do dia, o relatório de Alessandro Vieira realiza um duplo movimento: corrige equívocos graves da Câmara, mas fortalece uma aposta radical na lógica da guerra interna. Técnica e politicamente, a mensagem é clara: endurecer é prioridade, equilibrar não é.
O país enfrenta facções que já funcionam como governos paralelos. Mas, ao erguer uma máquina penal gigantesca financiada por apostas eletrônicas, o Senado entrega um recado ambíguo. Falta a mesma energia para investir em políticas sociais, presença estatal e reconstrução institucional.
Não se combate o crime organizado apenas com prisões longas. Combate-se com Estado. E, sobretudo, com a coragem de admitir que nenhum muro substitui o abandono — e nenhum país resiste quando decide virar as costas para os seus próprios fundamentos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

