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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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De volta ao futuro: Talibanistão, Ano 2000

Caro leitor: o presente artigo é muito especial, uma viagem pelas veredas da memória como nenhuma outra: de volta a tempos pré-históricos - antes do 11 de setembro, antes do You-Tube, antes do mundo das redes

Cabul bombardeada em 2000 (Foto: Pepe Escobar)
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Pepe Escobar para o The Saker

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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Bem-vindos ao Afeganistão do Talibã – o Talibanistão – no Ano 2000. Foi então que o fotógrafo Jason Florio e eu cruzamos lentamente o país de leste a oeste, da fronteira do Paquistão em Torkham até fronteira iraniana em Islam Qillah. Como  funcionários afegãos de ONGs reconheceram, fomos os primeiros ocidentais a fazer esse percurso em muitos anos.  

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Fátima, Maliha e Nouria, em sua casa em Cabul

Bons tempos, aqueles. Bill Clinton desfrutava de seus últimos dias na Casa Branca. Osama bin Laden era um convidado discreto do Mulá Omar – apenas ocasionalmente chegando às primeiras páginas dos jornais. Não havia sinal de 11 de setembro, da invasão do Iraque, da "guerra ao terror", da perpétua crise financeira, da parceria estratégica Rússia-China. A globalização corria solta e os Estados Unidos eram, incontestavelmente, o chefão global. O governo Clinton e o Talibã se embrenhavam em território do Gasodutistão – discutindo a tortuosa proposta do gasoduto transafegão. 

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Tentamos de tudo, mas não conseguimos sequer um vislumbre do Mulá Omar. Osama bin Laden também andava sumido. Mas conseguimos ter a experiência do Talibanistão em funcionamento, nos mínimos detalhes. 

Hoje é um dia especial para revisitá-lo. A Guerra Eterna no Afeganistão chegou ao fim e de agora em diante ela será um vira-lata híbrido combatendo a integração do Afeganistão nas Novas Rotas da Seda e na Grande Eurásia. 

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No ano 2000, escrevi um diário de viagem como matéria especial para uma revista política japonesa hoje extinta e, dez anos depois, uma mini-série de três partes para o Asia Times retomando aquele texto.

A Parte 2 dessa série pode ser encontrada aqui, e a Parte 3 aqui.

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No entanto, este ensaio especificamente – a parte 1 – havia desaparecido por completo da Internet (longa história). Eu o encontrei recentemente, por acidente, em um disco rígido. As imagens vêm das filmagens que fiz na época com uma Sony mini-DV: acabo de receber o arquivo, hoje, de Paris. 

Trata-se de um vislumbre de um mundo há muito perdido, que pode ser visto como um registro histórico de uma época na qual ninguém jamais sonharia com um "momento Saigon" remixado – com um grupo guerreiro heterogêneo, agora de cara nova e convenientemente rotulado de "Talibã,  que depois de esperar pacientemente, bem ao estilo pashtun, por duas longas décadas, agora louva Alá por, ao final, ter dado a eles a vitória sobre mais um invasor estrangeiro. 

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Agora vamos pegar a estrada. 

CABUL, GHAZNI – Fátima, Maliha e Nouria, a quem eu costumava chamar de As Três Graças, hoje devem ter 40, 39 e 35 anos de idade, respectivamente. No ano 2000 elas moravam em uma casa vazia destruída por bombardeios, ao lado de uma mesquita coberta de marcas de bala, em um semi-destruído e apocalíptico parque temático chamado Cabul – naquela época a capital mundial dos contêineres descartados (ou reconstituídos por um míssil e reconvertidos em uma lojinha; uma cidade onde os refugiados eram 70% da população, onde legiões de crianças sem-teto carregavam às costas sacos de dinheiro (um dólar valia mais de 60 mil afeganis), e onde havia mais carneiros do que ônibus Mercedes chacoalhantes. 

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Sob a impiedosa teocracia talibã, as Três Graças sofriam uma tripla discriminação - como mulheres, como hazaras e como xiitas. Elas viviam em Kardechar, um bairro totalmente destruído nos anos 1990 pela guerra entre o Comandante Massoud, o Leão do Panjshir, e os hazaras (descendentes de casamentos mistos entre os guerreiros mongóis de Genghis Khan e os povos turcos e tajiiques),  antes da tomada do poder pelo Talibã em 1996. Os hazaras sempre foram o elo mais frágil na aliança tajique-uzbeque-hazara - apoiada por Irã, Rússia e China no confronto contra o Talibã.

Todos os desanimados intelectuais que conheci em Cabul invariavelmente definiam o Talibã como uma "força de ocupação de fanáticos religiosos" cujo medievalismo rural soava totalmente absurdo a tajiques urbanos, acostumados a uma forma mais moderada do Islã. Segundo um professor universitário, sua jihad não é contra os kafires, é contra todos os outros muçulmanos que seguem o Islã".  

Passei um bom tempo conversando com as Três Graças em sua casa destruída por bombardeios. Elas falavam dari e a tradução foi feita por seu irmão Aloyuz, que havia passado alguns anos no Irã para sustentar a família à distância. Esse simples fato, em si, já assegurava que, se fôssemos pegos, seríamos todos fuzilados pela V&V talibã - o notório Departamento de Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, a polícia religiosa do Talibã. 

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Cabul bombardeada era assim em 2000(Photo: Pepe Escobar)Pepe Escobar

O sonho das Três Graças era viver "livres, e não sob pressão". Elas nunca haviam ido a um restaurante, um bar ou um cinema. Fátima gostava de música de "rock" que, nesse caso, significava a cantora afegã Natasha. Ela disse que "gostava" do Talibã, mas que, acima de tudo, queria voltar para a escola. Em nenhum momento elas mencionaram a discriminação entre sunitas e xiitas, e elas, na verdade, queriam ir embora para o Paquistão. 

Sua definição de "direitos humanos" dava prioridade à educação, ao direito a trabalhar e a conseguir um emprego no setor estatal. Fátima e Maliha queriam ser médicas: hoje elas talvez sejam, em terras hazara. Vinte e um anos atrás, elas passavam os dias tecendo belos xales de seda.  

A educação era terminantemente proibida para meninas de mais de doze anos. O índice de alfabetização entre as mulheres era de apenas 4%. Em volta da casa das Três Graças, quase todas as mulheres eram "viúvas de guerra", envoltas em empoeiradas burcas azul-claras e pedindo esmolas para sustentar os filhos. Não apenas isso era uma humilhação insuportável no contexto de uma sociedade islâmica ultra-rígida, mas também contradizia a obsessão talibã com a preservação da "honra e da pureza" de suas mulheres.

A população de Cabul era então de dois milhões, menos de 10% concentrados na periferia apoiada pelo Talibã. Os verdadeiros cabulenses os viam como bárbaros. Para o Talibã, Cabul era mais remota do que Marte. Todos os dias, ao cair da noite, o Hotel Intercontinental,  nessa época uma ruína arqueológica, recebia um inevitável grupo de turistas talibãs. Eles vinham para andar de elevador (o único da cidade) e caminhar em volta da piscina e da quadra de tênis. Era sua hora de folga do trabalho de fazer a ronda da cidade em sua frota de Toyota Hi-Lux importados de Dubai, enfeitados com homilias islâmicas pintadas nos vidros, kalashnikovs à mostra e levando pequenos chicotes para impor aos infiéis o comportamento apropriado e islamicamente correto. Mas, pelo menos, as Três Graças estavam em segurança: elas nunca saíam de seu abrigo bombardeado. 

Dúvida é pecado, debate é heresia

Poucas coisas eram mais emocionantes no Talibanistão de vinte-e-um anos atrás do que dar uma passada na Pul-e-Khisshti – a lendária Mesquita Azul, a maior do Afeganistão, em uma tarde de sexta-feira após as orações Jumma, e dar de cara com o elenco completo das Mil e Uma Noites. Qualquer imagem dessa apoteose de milhares de guerreiros rústicos de turbantes brancos ou pretos, olhos pintados com kohl e o exigido olhar macho-sexy faria o maior sucesso na capa da Uomo Vogue. Sequer pensar em tirar uma foto já era anátema: a entrada da mesquita fervilhava de informantes da V&V.

Por fim, em uma dessas animadas tardes de sexta-feira, consegui ser introduzido no interior do Santo Graal - os aposentos isolados do maulvi (sacerdote) Noor Muhamad Qureishi, àquela época o Profeta Talibã em Cabul. Ele jamais havia trocado ideias com um ocidental. Foi certamente uma das entrevistas mais surrealistas de minha vida. 

Qureishi, como todos os líderes religiosos do Talibã,  foi educado em uma madrassa paquistanesa. À primeira vista, ele parecia um típico deobandi barra-pesada: os deobandis, como o Ocidente mais tarde descobriria, eram um movimento inicialmente progressista nascido na Índia em meados do século XIX para redespertar os valores islâmicos face à expansão do Império Britânico. Mas logo eles descambaram para a megalomania, a discriminação contra as mulheres e o ódio aos xiitas.

Acima de tudo, Quereishi era o produto quintessencial de um período de crescimento - a conexão entre o ISI e o partido Jamaat-e-Islami (JI) durante a jihad antissoviética dos anos 1980, quando milhares de madrassas foram construídas no cinturão pashtun do Paquistão. Os refugiados afegãos tinham direito a educação gratuita, um telhado sobre suas cabeças, três refeições por dia e treinamento militar. Seus "educadores" eram maulvis semi-alfabetizados que nunca haviam ouvido falar da agenda reformista do movimento deobandi original.

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Na fronteira afegã-iraniana em Islam qilla

Reclinado em uma almofada puída sobre um dos tapetes esfarrapados da mesquita, Qureishi, falando pashto, ditava a lei deobandi por horas a fio. Entre outras coisas, ele disse que o movimento era o "mais popular" porque seus ideólogos sonharam que o Profeta Maomé ordenou que eles construíssem uma madrassa em Deoband, na Índia. Essa, portanto, era a forma mais pura do Islã "porque ela havia vindo diretamente de Maomé". Apesar do formidável catálogo das atrocidades do Talibã, ele insistia em sua "pureza". 

Qureishi intrometia-se a opinar sobre a inferioridade dos hindus devido a suas vacas sagradas ("por que não cachorros, pelo menos eles são fiéis a seus donos"). Já o budismo era decididamente depravado ("Buda é um ídolo"). Ele tinha enfartes múltiplos com as go-go girls budistas da Tailândia, que dançavam de seios nus à noite e ofereciam incenso no templo na manhã seguinte.

Dúvida é pecado. Debate é heresia. "O único verdadeiro conhecimento é o Corão". Ele afirmava que "todas as formas de conhecimento científico moderno vieram do Corão". A título de exemplo ele citava – o que mais seria? – um verso corânico (o Corão, por sinal, em sua versão neo-deobandi talibanizada, proibia as mulheres de escrever e permitia que elas frequentassem a escola até os dez anos de idade, nada mais). Não consegui deixar de pensar naquele francês anônimo do século XVIIII - típico produto do Iluminismo - que escreveu o Tratado dos Três Impostores - Moisés, Jesus e Maomé. Mas se eu tentasse inserir o Iluminismo europeu nesse monólogo (dele) eu provavelmente seria fuzilado. Basicamente, Qureishi, por fim, conseguiu me convencer de que todo esse jogo de sombras religioso era para me convencer de que "minha seita é mais pura que a sua". 

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Os anciãos da aldeia em Herat

Toque de novo, infiel

O Talibanistão viveu sob uma severa cultura kalashnikov. Mas a suprema e mortal arma anti-talibã não era um fuzil, nem mesmo um morteiro ou granada propelida a foguete. A arma mais mortífera era uma câmera fotográfica. Eu sabia que esse dia inevitavelmente chegaria, e ele chegou no estádio de Cabul, construído pela antiga URSS para louvar o internacionalismo proletário. Uma outra sexta-feira, às cinco da tarde, hora do futebol semanal - a única forma de diversão ausente do Index Prohibutorum talibã  além das execuções públicas e do sorvete de manga.

Jason e eu estávamos instalados na tribuna VIP – preço da entrada: menos de 10 centavos de dólar. O estádio estava lotado - mas silencioso como uma mesquita. Dois times, o vermelho e o azul, jogavam da maneira islamicamente correta com saias extra por baixo dos calções. No intervalo, o estádio inteiro  - ao som do "Allah Akbar" correu para rezar ao lado do campo. Os que não foram foram espancados ou levados para a cadeia.

Jason tinha suas câmeras penduradas no pescoço mas não as usava. Mas isso já foi mais do que suficiente para um adolescente histérico informante da V&V. Fomos escoltados para fora da arquibancada  por um pequeno exército de uma irmandade sorridente e homoerótica, que então eram chamados de "soldados de Alá". Finalmente, fomos levados a um talibã de turbante branco e olhos de assassino, que não era ninguém menos que o Mulá Salimi, o vice-ministro da polícia religiosa de Cabul – a reencarnação do Grande inquisidor. Fomos afinal escortados para fora do estádio e jogados em uma Hi-Lux com destinação desconhecida. De repente, fazíamos mais sucesso com a multidão que o próprio jogo de futebol.

Em um "escritório" do Talibã – uma toalha colocada sobre a grama em frente a um prédio bombardeado, decorado com um telefone por satélite mudo - somos acusados de espionagem. Nossas mochilas são minuciosamente revistadas. Salimi inspeciona dois rolos de filme das câmeras de Jason: nenhuma foto incriminadora. Agora é a vez de minha Sony mini-DV. Apertamos o "play". Salimi recua horrorizado. Explicamos que nada foi gravado na tela azul. O que realmente havia sido gravado - bastava ele apertar "rewind"- bastaria para nos mandar para a forca, inclusive muita coisa com as Três Graças. Mais uma vez, notamos que o Talibã precisava urgentemente não só de diretores de arte e agentes de relações públicas, mas também de uma garotada craque em info-tecnologia.

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Tecendo tapetes em um bazar de Herat

Na anti-iconografia do Talibã, o vídeo, em tese, poderia ser permitido porque a tela é um espelho. Bem, mas tarde ficaríamos sabendo da própria boca do leão, ou seja, do Ministério da Informação e Cultura em Kandahar: televisão e vídeo continuariam perpetuamente banidos. 

Naquela época, alguns poucos estúdios de fotografia sobreviveram próximo a um dos bazares de Cabul – produzindo apenas fotos 3x4 para documentos. Os proprietários pagavam suas contas alugando suas máquinas de xerox. O Foto-Estúdio Zahir ainda exibia nas paredes uma coleção de fotos preto e branco e sépia de Cabul, Herat, minaretes, nômades e caravanas. Entre Leicas, magníficas Speed Graphic 8x10 e empoeiradas câmeras panorâmicas russas, o Sr. Zahir lamentava-se: "a fotografia está morta no Afeganistão". Pelo menos, não seria por muito tempo.

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O minarete Ghazni, do século XI, com uma base militar talibã no primeiro plano

Então, depois de um interminável debate em pashto misturado a algum urdu e algum inglês, fomos "liberados". Alguns talibãs - mas não Salimi, que ainda nos trespassava com seus olhos de assassino - tentam se desculpar formalmente, dizendo que aquilo era incompatível com o código pashtun de hospitalidade. Todos os pashtuns tribais - como o Talibã – seguem o pashtunwali, o rígido código que enfatiza, entre outras coisas, hospitalidade, vingança e uma vida islâmica piedosa. Segundo o código, é um conselho de anciãos que arbitra disputas específicas, aplicando um compêndio de leis e castigos. A maioria dos casos envolve assassinatos, disputas por terras e problemas com mulheres. Para os pashtuns, a linha entre o pashtunwali e a Sharia sempre foi nebulosa.

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Uma caravana nômade Kuchi indo em direção a Kandahar, ao sul.

A  V&V, obviamente, não foi criação do Mulá Omar, o "Líder dos Fiéis", tomando como base um original saudita. Em seu apogeu, na segunda metade da década de 1990, a V&V era uma formidável agência de inteligência - com informantes infiltrados no exército, ministérios, hospitais, escritórios da ONU, ONGs - evocando uma bizarra lembrança da KHAD, o enorme serviço de inteligência do regime comunista da década de 1980, durante a jihad anti-URSS. A diferença é que a V&V respondia unicamente às ordens - transmitidas em pedacinhos de papel - do próprio Mulá Omar. 

Dando de cara com a base

O veredito ecoou como uma adaga rasgando o ar opressivo do deserto próximo a Ghazni. Uma foto panorâmica de 360 graus revelou um fundo de montanhas onde o mineral havia expelido todo o vegetal. A silhueta de dois minaretes  do século XI, e um primeiro plano ocupado por tanques, helicópteros e lançadores de foguetes. O veredito, pronunciado em pashto e balbuciado por nosso aterrorizado tradutor oficial imposto por Cabul era inexorável: "Vocês serão denunciados em um tribunal militar. A investigação será longa, seis meses. Enquanto isso, vocês esperarão a decisão na cadeia". 

Mais uma vez estávamos sendo acusados de espionagem, mas agora a coisa era séria. Poderíamos ser executados com um tiro na nuca - ao estilo Khmer Vermelho. Ou apedrejados. Ou jogados em uma cova rasa e sepultados vivos por uma parede de tijolos esmagada por um trator. Os brilhantes métodos talibãs para a solução final eram incontáveis. E pensar que tudo isso estava acontecendo por causa de dois minaretes.

Para começo de conversar, caminhar sobre um campo supostamente minado tentando alcançar dois minaretes não foi exatamente uma ideia brilhante. Especialistas do Exército Vermelho, ao longo da década de 1980, enterraram 12 milhões de minas no Afeganistão. Eles diversificaram loucamente: mais de 50 modelos, desde RAP-2s do Zimbábue até NR-127s belgas. Funcionários da ONU nos asseguraram que mais de metade do país estava minado. Oficiais afegãos do Centro de Detecção de Minas, em Herat, com seus 50 pastores alemães altamente treinados, mais tarde nos diriam que talvez leve 22.000 anos para retirar todas as minas do país inteiro. 

Meus objetos de desejo em Ghazni eram as duas "Torres da Vitória": duas superestruturas circulares, perdidas no meio do deserto e construídas pelos sassanianos como minaretes – comemorativas, não religiosas. Nunca houve uma mesquita nas redondezas. Em meados do século XIX, estudiosos atribuíram o grande minarete a Mahmud, protetor de Avicenna e ao grande poeta persa Ferdowsi. Hoje sabe-se que o pequeno minarete data de 1030, e o grande de 1099. Eles parecem dois foguetes de pedra apontando para o céu aberto e chamando a atenção dos que então viajavam pela então horrível rodovia Cabul-Kandahar, uma Via Dolorosa de pneus furados multinacionais – russos, chineses, iranianos.

O problema é que, há 21 anos, logo ao lado dos minaretes, havia uma invisível base militar talibã. A princípio, conseguíamos ver apenas um enorme depósito de armas. Pedimos a um sentinela para tirarmos algumas fotos e ele concordou. Caminhando em torno do depósito - em meio a carcaças de tanques russos e de carros armados - encontramos algumas peças de artilharia que ainda funcionavam. E uma solitária bandeira branca do Talibã. E nenhuma alma viva. Parecia um depósito abandonado. Mas então demos de cara com um helicóptero russo destruído – um prodígio de arte conceitual. Tarde demais: logo em seguida fomos interceptados por um talibã que surgiu do nada.

O comandante da base queria saber "sob qual lei" havíamos nos arrogado o direito de tirar fotografias. Ele queria saber qual a punição, "em nosso país", para um ato dessa natureza. Quando a barra começou a pesar de verdade, tudo se transformou em Monty Python. Um dos talibãs havia caminhado até a estrada para buscar nosso motorista, Fateh. Eles voltaram duas horas mais tarde. O comandante conversou com Fateh em pashto. E então nós fomos "liberados" por "respeito às barbas brancas de Fateh". Mas nos teríamos que "confessar" nosso crime - o que fizemos imediata e repetidamente.

O fato é que fomos soltos porque levávamos uma preciosa carta assinada pela mão do todo-poderoso Samiul Haq, líder da Haqqania, a fábrica-academia, o Harvard e o MIT Talibã em Akhora Khatak, na Grande Estrada Tronco entre Islamabad e Peshawar, no Paquistão. Legiões de ministros, governadores de província, comandantes militares, juízes e burocratas talibãs haviam estudado em Haqqania.

Haqqania foi fundada em 1947 pelo erudito religioso deobandi Abdul Haq, pai do ex-senador Samiul Haq, uma astuta raposa velha chegada a bordéis e tão insinuante quanto um vendedor de tapetes nos bazares de Peshawar. Ele foi um educador importante da primeira geração destribalizada, urbanizada e alfabetizada do Afeganistão, "alfabetizada", é claro, ao estilo do Islã deobandi e da marca Haqqania. Em Haqqania – onde vi milhares de estudantes do Tajiquistão, do Uzbequistão e do Cazaquistão sendo doutrinados para futuramente exportarem a talibanização para a Ásia Central - debate era  heresia, o mestre era infalível e Samiul Haq era quase tão perfeito quanto Alá.

Ele me disse – sem qualquer intenção metafórica – que "Alá havia escolhido o Mulá Omar para ser o líder do Talibã". E ele tinha certeza de que quando a Revolução Islâmica chegasse ao Paquistão, "ela seria liderada por um levante de massas inédito" – como o Mulá Omar. Àquela época, Haq era consultor de Omar para relações internacionais e decisões com base na Sharia. Ele colocava Rússia e Estados Unidos no mesmo pacote como os "inimigos de nossa época", culpava os Estados Unidos pela tragédia afegã mas, fora isso, oferecia-se para entregar Osama bin Laden aos americanos se Bill Clinton garantisse que não haveria interferências nos assuntos afegãos. 

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Vire à esquerda para o Ministério das Relações Exteriores - então reconhecido apenas pelo Paquistão, pela Arábia Saudita e pela UEA.

De volta a Ghazni, o comandante talibã chegou mesmo a nos convidar para tomar chá verde. Obrigado, mas não, obrigado. Agradecemos a misericórdia de Alá visitando a tumba do sultão Mahmud, em Razah, a menos de um quilômetro das torres. A tumba é uma obra de arte - mármore translúcido gravado em alfabeto cúfico. O traçado das letras cúficas, se observado como puro grafismo, revela-se como a transposição do verbo, do audível para o visível. A conclusão, portanto, era inevitável: o Talibã havia conseguido ignorar por completo a história de sua própria terra, construindo uma base militar em cima de duas relíquias arquitetônicas, incapazes de reconhecer sequer o desenho gráfico de seu próprio alfabeto islâmico como uma forma de arte.

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