Defender o humano contra a padronização é, hoje, a forma mais urgente de justiça
Entre cadernos mal rabiscados e o exílio forçado, Brodsky mostrou que a genialidade floresce justamente onde a escola e o sistema falham em reconhecer o talento
Em 1948, na pacata Polyany, Rússia, um menino de dez anos recebeu um veredito escolar devastador: "Teimoso. Preguiçoso. Mal-educado. Perturbador na aula. Faz mal os trabalhos de casa ou não faz nada. Seus cadernos são confusos e cheios de rabiscos. Ele poderia ser um excelente aluno…, mas não tenta." Esse menino era Joseph Brodsky. Para seus professores, um caso perdido; para o mundo, décadas depois, um dos maiores poetas do século XX.
A escola soviética nunca lhe despertou entusiasmo. Pelo contrário: aborrecido, Brodsky acumulava fracassos, trocava de instituição como quem troca de estação de bonde e, já no oitavo ano, rompeu o pacto com as carteiras escolares. Jurou que não voltaria. E não voltou. Sem diploma, sem horizonte claro, parecia condenado a ser mais um no exército de anônimos da União Soviética.
Mas havia algo mais forte que qualquer boletim: as ruas de Leningrado. "As fachadas dos edifícios ensinaram-me mais sobre egípcios, gregos e romanos do que qualquer sala de aula poderia", lembraria ele anos depois. A cidade, com suas cicatrizes e sua beleza, foi a verdadeira universidade do jovem poeta. Enquanto fazia trabalhos esparsos — de assistente em hospitais a operário em fábricas — cultivava em silêncio sua maior vocação: a poesia. "A poesia não é uma forma de entretenimento, mas um modo de vida. Ela não é uma profissão, mas um destino", escreveria em um de seus ensaios.
O regime soviético não tardou a perceber que havia perigo em sua obstinação. Brodsky foi perseguido, julgado por "parasitismo social" e finalmente exilado. Mas nem a censura, nem os tribunais, nem o desterro foram capazes de quebrar a bússola que o guiava: a palavra. Em versos escritos no auge da perseguição, ressoava a força de sua resistência: "Não ergas a voz, meu coração, / pois mesmo no exílio a alma tem pátria."
Em 1987, a história completou seu arco de ironia: o mesmo Joseph Brodsky que fora desdenhado como preguiçoso e rabiscador recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Não se tratava apenas de um reconhecimento individual, mas de uma lição universal. A genialidade não cabe nos relatórios escolares. O talento, muitas vezes, floresce em terrenos improváveis, desafiando a lógica das instituições. "A grande literatura não é produto de programas ou sistemas, mas da solidão humana que se recusa a calar", declarou em seu discurso em Estocolmo.
Brodsky provou que certos espíritos não nasceram para seguir as regras, mas para reescrevê-las. Sua trajetória expõe o abismo entre o que a escola mede e o que a vida revela. Para além da biografia de um poeta, é a lembrança de que há alunos que não se ajustam aos padrões porque carregam dentro de si uma gramática própria, uma música interior que só mais tarde o mundo aprenderá a escutar.
Assim, aquele menino de cadernos desordenados transformou-se em arquiteto de versos imortais. Sua vida confirma uma verdade incômoda: o brilho humano muitas vezes não se deixa aprisionar em notas, relatórios ou diplomas. Ele nasce teimoso, cresce rebelde — e só triunfa porque ousa desobedecer.
A história de Brodsky ecoa em outros destinos improváveis. Thomas Alva Edison, por exemplo, foi expulso da escola após apenas três meses de aula. Seu professor o classificou como "incapaz de aprender". Edison, que sofria de dificuldades auditivas, parecia condenado à insignificância. Foi sua mãe quem o educou em casa, estimulando sua curiosidade. O resultado? Tornou-se um dos maiores inventores da modernidade, responsável por mais de mil patentes e pela criação da lâmpada elétrica. Aquilo que era visto como limitação revelou-se motor de genialidade.
Vincent van Gogh seguiu uma trajetória semelhante de exclusão. Considerado inadaptado, instável, incapaz de manter empregos, viveu mergulhado em fracassos pessoais e financeiros. Morreu sem vender mais do que uma pintura. Seus vizinhos o viam como um excêntrico perigoso; seus contemporâneos, como um fracassado. Apenas após sua morte o mundo percebeu que aquelas telas vibrantes, pintadas em solidão febril, redefiniriam os rumos da arte ocidental. Van Gogh, rejeitado em vida, converteu-se em sinônimo de genialidade artística.
Eis o fio invisível que conecta Brodsky, Edison e Van Gogh: todos foram descartados pelos critérios vigentes. Professores, críticos ou vizinhos não souberam reconhecer a força criativa que escapava às métricas do seu tempo. A história, porém, se encarregou de corrigir o erro. O que a sociedade classificou como falha, preguiça ou desajuste, o futuro rebatizou como invenção, poesia e cor.
Hoje, em um mundo que ainda tenta encaixar talentos em métricas padronizadas — seja por meio de algoritmos, rankings universitários ou índices de produtividade — a história de Brodsky soa como advertência. Nem todos os gênios cabem nas grades de avaliação. Muitos permanecem invisíveis até que o acaso ou a coragem lhes ofereça espaço.
E em um tempo em que a inteligência artificial mede desempenho, filtra currículos, avalia redações e até sugere futuros profissionais, torna-se urgente recordar que o humano não se resume a dados. Brodsky nos ensina que o imprevisível, o "erro" e o desvio podem ser a essência do talento. Se aceitarmos apenas os padrões impostos por máquinas ou sistemas burocráticos, corremos o risco de perder aqueles que, como ele, nascem para reescrever o destino.
Cabe a nós, leitores e cidadãos, não permitir que o olhar estreito de algoritmos e instituições repita os erros da história. O futuro não pode ser um museu de talentos sufocados; deve ser um espaço onde o inesperado floresça, onde a teimosia criativa encontre solo fértil. Defender o humano contra a padronização é, hoje, a forma mais urgente de justiça.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




