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Deixando a profundidade de lado, eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia

Belchior tinha Dante em mais alta conta. E parece não apenas ter se envolvido, mas vivido uma cena de sua Comédia

Belchior (Foto: Vinícius Madureira)
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Há quase três anos, escrevi na minha página do Facebook um texto inspirado numa reportagem da Revista Época ("A divina tragédia de Belchior"),1 de dezembro de 2013, associando a vida de errância algo rimbaudiana do artista, junto de sua companheira Edna, a alguns elementos da Comédia de Dante.

Sabe-se que Nietzsche colapsou em janeiro de 1889, após se abraçar em lágrimas a um cavalo açoitado por seu dono numa praça de Turim. Quando erguido, já não era mais o filósofo Nietzsche, mas o Deus Dionísio, nome com que passou a assinar suas últimas cartas. Nesse episódio insólito — recontado por Kundera e, mais recentemente, por Béla Tarr e Ágnes Hranitzky —, Nietzsche parece ter personificado o Raskolnikov de "Crime e Castigo", de Dostoiévski — cuja literatura, diga-se de passagem, o alemão tinha em mais alta conta. A certa altura da obra, Raskolnikov também se abraça a um cavalo barbaramente surrado por uma ralé de bêbados impiedosos.

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Do mesmo modo, Belchior tinha Dante em mais alta conta. E parece não apenas ter se envolvido, mas vivido uma cena de sua Comédia.

Ao longo da leitura daquela matéria, não pude deixar de notar o coerente comparecimento de alguns arquétipos da cultura renascentista, tanto presentes na Divina Comédia — cuja oportunidade não teria sido talvez explorada indevidamente pelo bom autor que a subscreve —, como na trama do próprio Belchior nesses últimos cinco ou seis anos de sua vida.

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De acordo com Dante Alighieri, Belchior e Edna, ambos representados em sua obra magna por Paolo Malatesta e Francesca de Rimini, respectivamente, encontrar-se-iam no segundo círculo do Inferno, o "Vale dos Ventos", logo após o Limbo. Trata-se de um topos metafísico reservado aos concupiscentes malfeitores da carne, subjugados por apetites (sexuais, em geral) que se insinuaram luxuriosamente à Razão.

Assim como eles, aí também padecem Cleópatra, Aquiles, Helena de Tróia, Semíramis e ainda muitas outras figuras literárias ou históricas, mais ou menos célebres.

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Na morte, restam condenados a serem varridos impetuosamente pelo ar afora — Ceará, São Paulo, Uruguai, Porto Alegre, Guaíba, Porto Alegre de novo... no caso de Belchior e Edna —, impelidos por ventanias violentas. Não é necessário enfatizar o paralelo óbvio ao pathos de se deixar arrastar sem rumo por paixões em vida, pelo "amor impuro", mais propriamente dito.

Convocado por Dante, após uma breve pausa do turbilhão a que estava preso, o casal adúltero Francesca da Rimini e Paolo Malatesta lhe narra a saga de seus tormentos de amor. A bem da verdade, Paolo, sempre absorto e taciturno, nada diz; embora de maneira oblíqua, Francesca é quem porta a sua voz. Perceba-se que nem na Comédia, tampouco na matéria de Época, não nos é deixado o ponto de vista do amante, supondo que este tenha um. Apenas a mulher fala.

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Assoma ainda de certo modo emblemático que Belchior mesmo tenha se empenhado por tempos num empreendimento de tradução da Comédia a uma linguagem mais acessível. A literatura clínica registra que boa porção dos que sofrem de determinados transtornos psíquicos busca, de algum modo, a intelecção de tais desordens. O velho Freud lembra que muitos vieram a se tornar psicanalistas (e dos bons) porque primeiramente intentaram compreender as suas próprias neuroses.

Outro detalhe no mínimo curioso: precisamente na música "Divina Comédia Humana", do próprio Belchior, um analista que o eu-lírico tem por amigo lhe diz que este não vai "ser feliz direito", nem "viver satisfeito". E por quê, afinal? Porque "o amor", suspira, "é uma coisa mais profunda que um transa sensual"....

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O sofrimento de ambos — Francesca e Paolo, Belchior e Edna — é tão medonho que o Peregrino chega, por eles, a desmaiar de compaixão. Foi, aliás, o gênio de Dante quem pôs à boca de Francesca a célebre constatação: "Não há dor maior que recordar, na miséria, os tempos felizes." (Canto V, 103-105).

A húbris própria dos aventureiros do amor parece conduzir necessariamente, segundo a mentalidade florentina, a um desfecho (morte) trágico ou violento.

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