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Denise Assis

Jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" , "Imaculada" e "Claudio Guerra: Matar e Queimar".

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Delfim Netto, do milagre aos porões

"Antônio Delfim Netto, por sua longevidade – morreu na madrugada de hoje (12/08) aos 96 anos –, teve a rara oportunidade de 'lustrar' a sua biografia em vida"

Delfim Netto durante entrevista à Reuters em São Paulo em julho de 2013 15/07/2013 REUTERS/Paulo Whitaker (Foto: REUTERS/Paulo Whitaker)

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Antônio Delfim Netto, por sua longevidade – morreu na madrugada de hoje (12/08) aos 96 anos –, teve a rara oportunidade de “lustrar” a sua biografia em vida. Foi do papel de signatário do dantesco Ato Institucional nº 5 (AI-5), ao consultor e amigo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para assuntos econômicos, fato revelado várias vezes pelo próprio presidente e comentado por Delfim, sem reservas.

Para os mais jovens, a imagem que fica é a do entrevistado fofinho, de coletes de lã, a pregar princípios keynesianos, que por vezes quase encostavam na política do presidente Lula, não fosse a sua forte formação para as práticas liberais que praticou com radicalismo e gosto. Sua longeva passagem pelos governos dos ditadores militares cunhou nas manifestações de trabalhadores a principal palavra de ordem dos anos de 1970: “não ao arrocho salarial”. E, por arrocho, entenda-se um salário menos que mínimo. Na verdade, sufocante, e uma economia que empurrava o homem do campo para os grandes centros no rastro do tal crescimento a níveis do tal “milagre brasileiro”, adensando as cidades que se multiplicaram em favelas dramáticas, desabando sobre as metrópoles suas misérias mais absolutas.

Sim, o ex-ministro foi uma verdadeira usina de gerar pobres, com a sua política que prometia – tal como os pastores neopentecostais prometem o reino dos céus -, que trabalhassem duro para o “bolo” (leia-se a economia do país) crescer e aí ele, o todo poderoso, dividiria com a plebe uma fatia desse bolo. A massa trabalhadora ou sucumbia ou era moída de pau pela desobediência e revolta, na tortura dos porões da ditadura. 

É longa a lista de líderes sindicais que morreram nessas circunstâncias. Manoel Fiel Filho é apenas o mais famoso deles, porque sua morte causou a queda do general Ednardo D’Ávila Melo, demitido do Comando do II Exército, por Ernesto Geisel, o ditador de então, três dias depois da morte do operário. O fato foi um dos ingredientes que contribuíram para a “abertura lenta e gradual”.

Desse tempo, além da proverbial frase sobre o bolo, para os mais antigos ficaram as pichações feitas nos muros das cidades: “Cabral descobriu o Brasil. O ministro, Delfim”. Exagero da retórica sindicalista, que perde o salário, mas não perde o humor. 

Contudo, o que os jornalões vão contar hoje, data em que Delfim sai da vida para entrar nos compêndios econômicos e históricos, como o entrevistado fofo, de coletinho de lã e discurso conciliador, é a melhor parte, claro. Por exemplo, já saltam dos textos dados tais como: “sob o seu comando, o Produto Interno Bruto (PIB), cresceu 85% e a renda per capita dos brasileiros, 62%.” Resta saber de que brasileiro estamos falando, pois na base da pirâmide o que se via eram pessoas morrendo na fila dos hospitais públicos de doenças típicas dos desnutridos: anemia, desinteria e outros males da falta de comida.

O “milagre”, pelo que se dizia nos meios acadêmicos progressistas, a portas fechadas, é que os índices da inflação, na época elaborada “in vitro”, na Fundação Getúlio Vargas, era fruto de telefonemas entre Delfim e o diretor da instituição, Julian Chacel, que tratavam de suprimir do balanço dos números os “vilões” que, na safra, empurravam os preços para cima. Se era o tomate, que banissem o tomate da lista de cálculo. Daí surgiu a inspiração para Gilberto Gil criar a sua “Refazenda”, “denunciando” os malvados legumes.

Delfim foi ministro do regime militar nos governos dos generais Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e João Baptista Figueiredo e deputado federal. Esteve no comando da economia de 1967 e 1973. Para os que conhecem minimamente os idos da ditadura, os mais tenebrosos do período. Em público, costumava dizer que desconhecia o que ia nos porões com os presos militantes à mercê do Estado brasileiro. 

Impossível. Pelos apontamentos do diretor e executor da montagem do Destacamento de Operações Internas e Centro de Operações e Defesa Interna - DOI-CODI -, o major do Exército, Fredie Perdigão, todos sabiam de tudo. Em sua dissertação de final de curso da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, ele descreveu o funcionamento do aparato repressivo e suas diretrizes e ramificações: “Estabelece a estratégia de segurança adotada pelo governo brasileiro, entre outras, as seguintes prescrições, que também são fundamentais para o aperfeiçoamento do dispositivo de garantia de Segurança Interna: 

a) Que o presidente da República, para a formulação e execução dadas ações de Segurança Interna, contasse com a assessoria direta de uma comissão de alto nível;

b) Que o planejamento de Segurança Interna fosse feito, basicamente, nos escalões do Exército, CMR, Distrito Naval e Comando Aéreo do Brasil; 

(...) 

d) Que o do Exército, COM e CMA para a coordenação do planejamento e da execução integrada dos meios disponíveis para a garantia da Segurança interna, contasse com a assessoria das secretarias de Segurança Pública e das demais organizações policiais, civis e militares, federais e estaduais. 

Sabem o que isto quer dizer? Que quem quer que fosse chefe de algum órgão governamental naquela época estava dentro da máquina repressiva”. (ASSIS,2020).

E se assim não fosse – todos que tinham cargo público de comando tomava conhecimento de tudo -, basta reler a transcrição da ata de criação do AI-5, onde consta a íntegra do voto do ministro Delfim Netto. Ele não só votou sim, como pediu um agravamento do que estava sendo proposto, em nome do “desenvolvimento econômico”, confiram:

“Sua Excelência, o senhor ministro da Fazenda com a palavra.

 [Antônio Delfim Netto]

Senhor presidente, senhores membros do Conselho. Eu creio que a revolução veio não apenas para restabelecer a moralidade administrativa neste país, mas, principalmente, para criar as condições que permitissem uma modificação de estruturas que facilitassem o desenvolvimento econômico. Este é realmente o objetivo básico. Creio que a revolução, muito cedo, meteu-se numa camisa de força que a impede, realmente, de realizar esses objetivos. (...) É por isso, senhor presidente, que eu estou plenamente de acordo com a proposição que está sendo analisada no Conselho. E, se Vossa Excelência me permitisse, direi mesmo que creio que ela não é suficiente. Eu acredito que deveríamos atentar e deveríamos dar a Vossa Excelência, ao presidente da República, a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais, que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez. Eram essas as considerações que eu gostaria de fazer.”

Sua posição, a de que era preciso “apertar” ainda mais os cuidados com a Segurança Nacional, extrapolou da sala do palácio Guanabara, no Rio, onde foi assinado o AI-5, no dia 13 de dezembro de 1968, para a prática, com a ajuda de empresários. O mais famoso deles, (que acabou sendo justiçado por isso), foi Henning Albert Boilesen 1916/1971 - um executivo dinamarquês, naturalizado brasileiro que presidiu a Ultragaz e atuou como patrocinador da ditadura brasileira.

De acordo com relato do ex-delegado do Dops do Espírito Santo e eliminador confesso de corpos de guerrilheiros mortos pela repressão nas dependências tanto do DOI-CODI, como no centro clandestino de torturas de Petrópolis, a Casa da Morte, Delfim ficou responsável pela arrecadação dos cheques dos empresários, que mensalmente se reuniam em almoço para contribuir com a OBAN.

A OBAN – Operação Bandeirante, era uma “organização”, comandada pelo coronel Brilhante Ustra (1970-1974), nas dependências do DOI paulista, encarregada de moer gente. Quem entrava ali sabia que poderia não sair com vida. Foram em torno de 49 mortes e desaparecimentos cometidos em suas dependências. De acordo com Claudio Guerra e outras fontes que faziam esse relato em off, uma vez por mês havia um almoço em que cheques eram recolhidos dos empresários (a nata da Fiesp) para financiar as operações da repressão. O encarregado de “passar o chapéu”, foi a expressão que Guerra usou, era o ministro Delfim Netto. 

O ex-ministro, portanto, não só testemunhou, como incentivou – vide a ata do AI-5 – e, de acordo com o relato de Guerra, teve participação ativa no sustento da repressão. Esteve um período afastado do país, no que ficou conhecido como “exílio de luxo”, quando foi servir como embaixador em Paris, por articulação vingativa do general Golbery do Couto e Silva. Consta que Delfim entrou em rota de colisão com a eminência parda dos ditadores, quando sonhou disputar o governo de São Paulo, onde Golbery queria o amigo Paulo Maluf. Antes que o mal crescesse, o bruxo tratou de varrer para longe o que poderia ser um empecilho para Maluf. 

Esse passado, “abafado” pelos interlocutores de Delfim Netto porque ficou lá, num tempo remoto, aos olhos de hoje, e porque, conforme mencionado no início desse texto, o ex-ministro conseguiu em vida a própria reabilitação entre os personagens das esquerdas, foi dando espaço maior ao político polido, ao homem culto e afável a que todos acorriam na hora da agonia dos números, do corcovear do dólar e dos descaminhos da inflação. Dialogava com Dilma Rousseff, com Lula e quem mais topasse uma discussão em torno da boa mesa, com bons modos.

Uma reportagem da Isto É Dinheiro, descreveu há seis anos, uma prática adotada por Delfim Netto. Professor Emérito da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, ele enviava toda semana, os livros que acabava de ler, para a biblioteca da FEA. Àquela altura, eram mais de 88 mil volumes, que hoje integram o acervo que leva o seu nome, naquela biblioteca. Livros de diversas áreas do conhecimento, que o leitor começou a comprar no início dos anos 1940 nas livrarias e sebos da cidade.

Foram inúmeras as vezes que tentei entrevistá-lo. Uma delas com a intermediação do jornalista e amigo, Guilherme Barros, com quem o ex-ministro falava sem travas. Era uma vontade genuína de dar-lhe a oportunidade de confirmar ou refutar o que dele diziam. A pergunta que faria, morre hoje sem resposta: O senhor era o “caixa” da OBAN? Nunca aceitou ser entrevistado por mim. Nunca, portanto, vamos tirar a história em pratos limpos, para ficar no tema dos “almoços”.

 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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