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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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Derrite enfraquece o Estado e oferece às facções o que elas mais desejam

Texto de Derrite desloca recursos, distorce competências e impõe obstáculos inéditos ao governo, enquanto oferece às facções um ambiente mais favorável

Guilherme Derrite (Foto: Marina Ramos/Câmara dos Deputados)

A quarta versão do parecer de Guilherme Derrite surge como a quarta tentativa seguida de desfigurar o projeto nacional concebido por Ricardo Lewandowski para desarticular facções que violentam nossa segurança pública.

Para entender o alcance da distorção, basta observar sua forma: o parecer avança como um esboço rabiscado à pressa, onde trilhas tortas conduzem a becos institucionais, atalhos desviam da rota central e regiões inteiras permanecem sem legenda. Segurança pública exige projeto arquitetado, não mapa improvisado diante de um inimigo que domina a geometria do crime.

A espinha dorsal deslocada

O primeiro movimento de desmonte é o enfraquecimento proposital da Polícia Federal. O parecer desloca funções essenciais para as polícias estaduais e subordina a cooperação da PF à iniciativa dos governadores. É a reinstalação do improviso, justamente onde a técnica deveria comandar.

Essa inversão abre uma porta larga para a fragmentação institucional. O crime organizado prospera onde o Estado se divide, e não onde se articula. Desfazer a coerência nacional da PF significa entregar às facções o que elas mais desejam: um mosaico de interesses regionais vulneráveis a pressões políticas e disputas locais.

Derrite parece ignorar que a PF é o único órgão com alcance nacional, capacidade de rastrear fluxos internacionais e competência técnica para desmantelar redes financeiras sofisticadas. Ao amarrá-la às conjunturas estaduais, o parecer cria gargalos onde antes havia direção única.

O mapa torto das finanças ilícitas

A distorção se agrava quando o texto entrega aos estados a gestão dos bens confiscados das facções. Em vez de fortalecer a centralização técnica — como previra Lewandowski —, o parecer pulveriza o eixo econômico do combate ao crime, criando múltiplos cofres locais sujeitos a pressões e vulnerabilidades distintas.

Essa engenharia não apenas gera desigualdade operacional, mas abre espaço para desvios, disputas internas e manipulações políticas. O dinheiro do crime só teme uma força: controle unificado. Derrite propõe o contrário.

A comparação com a lógica curitibana da Lava Jato é inevitável. Entre 2015 e 2018, a força-tarefa liderada por Deltan Dallagnol e Sérgio Moro conduziu acordos que devolveram R$ 2,1 bilhões à Petrobras, mas, segundo relatório do CNJ publicado em 2021, articulou-se a criação de uma fundação privada de R$ 2,5 bilhões que seria gerida pelos próprios integrantes da operação. A gestão dos valores foi descrita como “caótica”, sem critérios uniformes. O parecer Derrite produz efeito semelhante: permitir que caixas paralelos se formem em nome de um federalismo de fachada, vulnerável e perigoso.

O excesso que confunde e enfraquece

No campo penal, a ampliação quase ilimitada de condutas equiparadas a terrorismo transforma a lei em um corredor estreito onde crimes distintos são comprimidos por tipificações excessivas. A precisão jurídica dá lugar ao exagero.

Essa fusão artificial entre violência armada, ataques reais e ações disruptivas menores ameaça gerar confusões graves na aplicação do direito. A função da lei penal é distinguir, não aglomerar. O parecer embaralha, e onde há embaralhamento, há injustiça.

A retórica de “endurecimento” esconde uma fragilidade: quanto mais o texto tenta parecer rígido, mais revela que foi construído sem medir consequências. É força sem freio, forma sem método.

Quando o Estado abandona, o crime ocupa

Um dos trechos mais inquietantes é a proibição de que dependentes de presos enquadrados no novo art. 2-A recebam auxílio enquanto o parente estiver privado de liberdade. O problema não é previdenciário — é estratégico.

Quando o Estado abandona famílias vulneráveis, as facções ocupam o espaço vazio. Pagam despesas, financiam necessidades básicas e constroem laços de gratidão que se convertem em lealdade. Tais vínculos, uma vez criados, são quase impossíveis de dissolver.

Ao impedir o mínimo de proteção institucional, o parecer cria o terreno ideal para que organizações criminosas ampliem sua base social e recrutem novas gerações. Em nome de uma suposta firmeza, Derrite oferece às facções um presente que elas jamais pediriam, mas sempre agradeceriam.

A muralha de areia

A ampliação de poderes judiciais — intervenção, dissolução, liquidação de empresas, transferência ao Estado — é outro ponto crítico. A intenção de atingir estruturas econômicas criminosas é legítima, mas o instrumento é mal calibrado e insuficientemente delimitado.

Construir repressão eficaz com dispositivos assim equivale a levantar uma muralha feita com tijolos de areia. Pode parecer imponente, mas sua fragilidade estrutural a torna inútil ao primeiro teste sério. A aparência de dureza nunca substitui a solidez institucional.

O parecer Derrite 4.0 tenta apresentar-se como modernização, mas é, de fato, uma soma de improvisos. A fragmentação institucional, a dispersão de recursos, o enfraquecimento da PF e a confusão penal desenham um único caminho: a desarticulação do que realmente funciona.

O país precisa de firmeza, mas precisa sobretudo de coerência. O projeto original do Ministério da Justiça seguia essa direção. O parecer Derrite 4.0 faz o oposto: promete força, entrega fragilidade; promete precisão, entrega distorções; promete ordem, entrega ruído.

Se facções criminosas pudessem escolher o modelo ideal de repressão estatal, escolheriam exatamente esse. E é justamente por isso que o Congresso não pode aceitá-lo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.