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Maria Fernanda de Carvalho

Formada em Letras Português pela UFSC e atualmente mestranda em Literatura pela mesma instituição.

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Desabafo sobre uma agressão ou Clarice e a liberdade

Vesti no peito o rosto de Clarice Lispector e sua frase "Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.". Uma mulher perguntou: "É Bolsonaro?". Respondi: "Não". É da UFSC?", me perguntou. "Sim", respondi. A resposta veio em um tom maldoso: "Então, tá explicado". "O que tá explicado?", retruquei. "A UFSC é um antro!". Não nos intimidemos. Estamos com Haddad

Desabafo sobre uma agressão ou Clarice e a liberdade (Foto: Esq.: Stuckert / Dir.: Valter Campanato - ABR)
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Hoje, dia 17 de outubro de 2018, vesti no peito o rosto de Clarice Lispector e sua frase "Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.". Encontrei a camiseta escondida no fundo do armário e a vesti. Diferentemente de Clarice, liberdade para mim já é o suficiente, mas, atualmente, nem isso temos mais. Fomos agredidas – eu e Clarice, com os olhos arregalados contra o fascismo e a barbárie, que agora se encontram em supermercados de classe média.

No mercado, diante da gôndola de pães, eu escolhia quais levar. Uma mulher de aproximadamente 45 anos e bem vestida (seja lá o que isso significar) olhou para mim com um sorriso incerto. Imaginei que estivesse me reconhecendo, afinal, há poucos minutos, comparávamos, juntas, os preços dos ovos caipiras. Certamente, me reconheceu, mas o sorriso incerto não estava direcionado a mim, mas à Clarice e à sua frase. Depois disso, voltou os olhos para mim e, invasiva e autoritária, perguntou: "É Bolsonaro?". Eu deveria ter perguntado se ela se referia a mim ou à Clarice, mas não o fiz (creio que tal presença de espírito seja possível somente no momento da escrita), apenas respondi firme e simplesmente: "Não". "É da UFSC?", me perguntou de novo invasiva e autoritária. (A camiseta comprada na UFSC e estampada com Clarice e a palavra "liberdade" me "denunciavam"?) "Sim", respondi com a calma de quem não tem nada a temer. E a resposta veio em um tom maldoso: "Então, tá explicado". "O que tá explicado?", retruquei. "A UFSC é um antro!". "Um antro?", perguntei horrorizada, "Só se for de conhecimento".

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Virei as costas, com o pão na mão, ouvindo a mulher gritando desequilibrada. Voltei a cabeça a ela ainda uma última vez e disse: "Eu sou contra violência, moça, sou contra tortura!". Diante dessas palavras, ela enlouqueceu e começou a gritar ainda mais alto, dizendo que violência era as pessoas morrendo na fila dos hospitais por conta dos governos do PT. Ouvi ainda ela me chamando de "ignorante" e de "filhinha de papai". Ela, que não me conhece e que esbravejava ridiculamente sozinha à espera de aplausos, que não vieram.

Mais uma vez, tive que passar perto dela para me dirigir a outro corredor. Ela não me olhou, estava como que possuída gritando para todos: "Tem que colocar uma bomba na UFSC! Tem que colocar uma bomba nessa universidade!". Sim, ela deseja que a UFSC queime como o Museu Nacional. Um rapaz, que repunha chás nas prateleiras e que, provável e infelizmente, não está na universidade, sacudia a cabeça negativamente e me olhava. Seu olhar foi o meu primeiro amparo: ele repudiava, como eu, aquelas frases absurdas e raivosas.

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Saí dali e me refugiei em um corredor vazio do mercado. Eu, que até então, estava calma, desabei. Chorei. Chorei muito. A Universidade Federal de Santa Catarina faz parte da minha vida e da minha história. Frequento a UFSC desde criança: minha mãe, assim como meu avô, trabalhou lá a vida inteira. Ambos já faleceram. Meu mesmo avô fez seus três cursos superiores lá. Na UFSC, eu também me formei e hoje sou pós-graduanda. Mas não é apenas afetiva e pessoal a importância que a UFSC tem para mim: ela me é importante pois assim também o é para milhares de pessoas, desde estudantes, professores, servidores à comunidade. Sem a UFSC, Florianópolis não passaria de uma cidade bonita e provinciana onde gente rica mora ou passa férias. Quando aquela mulher falou que deveria ser jogada uma bomba na UFSC, ela quis dizer que uma bomba deveria ser jogada em todos que a consideram fundamental como lugar de cultura, de pesquisa, de conhecimento, de debate, de diversidade, de inclusão. Aquela frase ecoava nos meus ouvidos e na minha cabeça, e me vinha à lembrança o reitor Cancellier. As lágrimas escorriam mais e mais.

Enxugadas as lágrimas, me dirigi à pequena fila de um dos caixas. Olhava para o rapaz operador do caixa, negro, e pensava que, excluindo o fato de eu ser mulher, eu não pertenço à nenhuma outra minoria: sou branca, sou heterossexual, sou de classe média. E fui agredida. Nesse momento, voltei a chorar, e minhas lágrimas escorreram para fora da universidade. Em pensamento, eu gritava: "E os negros? E os indígenas? E os homossexuais? E os pobres?". "E os pobres?", eu repetia em pensamento enquanto as lágrimas rolavam em meio a fila do caixa. "O que vai ser dos meus alunos?", era o meu grito mudo preso na garganta. Pois, além de estudante, sou professora. E penso nos outros. E fui agredida por essa eleitora do Bolsonaro por pensar nos outros, por me importar com os outros – e mais: por me importar com aqueles que são diferentes de mim. Eu, que nasci e fui criada por pais que me ensinaram esse valor como o maior que uma pessoa pode ter. Mas quem vive corroído pelo ódio não consegue enxergar e compreender o significado e a grandeza disso.

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Percebi que um homem na fila do caixa ao lado olhava para mim enquanto eu chorava. Depois de pagar minhas compras, na saída do mercado, o homem me esperava e, se desculpando por considerar estar sendo invasivo, perguntou se eu estava bem. Contei o que havia ocorrido ali dentro e ele, que não havia presenciado nada, se indignou e se solidarizou comigo: foi meu segundo amparo. O terceiro veio quando eu estava entrando no meu carro: de longe, um rapaz que havia visto a cena sem eu perceber me disse, gritando, com ar descontraído, que aquela mulher era louca. Tentei sorrir, mas não consegui. Essa mulher, assim como outros milhões de pessoas, não é louca: é burra, ignorante ou fascista. Ou as três coisas juntas. Me entristece que tantas pessoas já tenham sido agredidas, muitas de modo muito mais violento do que eu fui, e que, infelizmente, muitas ainda serão. Violências verbais e físicas – algumas fatais – estão sendo empoderadas e legitimadas pelo discurso de um candidato que nem sequer ainda foi eleito, e que talvez não seja, mas que já fez um enorme estrago no país. No entanto, não esqueçamos: o fascismo ainda pode ser contido e o estrago trazido pelo ódio, reparado.

Hoje sofri, chorei, me indignei, mas não baixei a cabeça, não me calei, não ofendi nem agredi ninguém – apenas confirmei convicta e orgulhosamente meus posicionamentos sobre e perante o mundo. Não nos intimidemos. Estamos juntos. Estamos com Haddad.

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No fim, percebi que, no peito, além de Clarice, eu carregava comigo a liberdade e a democracia.

 

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