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Roberto Ponciano

Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia. Doutorando em Literatura Comparada

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Devemos voltar ao Lênin 1914, a dialética não deve nunca ser confundida com o campismo

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Leandro Konder escreveu uma obra fundamental para entender o marxismo brasileiro, chama-se a derrota da dialética. Nele ele explica alguns dos problemas do marxismo que chegou no Brasil. Falta de uma classe operária de terceira geração (este um problema, aliás, colocado também por Nélson Werneck Sodré), a revolução industrial tardia no Brasil gerou uma classe operária de primeira geração, sem acúmulo de lutas operárias ou de embates teóricos. Na verdade, a classe operária brasileira tomou de empréstimo a tradição anarquista, principalmente italiana, e depois fez uma passagem, sem que houvesse um embate teórico real, para o marxismo. Konder assinala que muito que se convencionou chamar de marxismo no Brasil eram vulgatas de livros de Marx ou manuais de filosofia política, que se foram suficientes para alimentar a brava luta operária do PCB legaram um grande atraso em termos de compreensão dialética desta ferramenta chamada marxismo.

Na verdade, o que eu chamo de campismo nem é novo no Brasil, é óbvio que a vanguarda da classe trabalhadora não precisa ser especialista em teoria para fazer luta social, mas dentro desta vanguarda é sim necessário o que Gramsci chamaria de um corpo técnico de intelectuais orgânicos capaz de produzir teoria e política conjuntural a partir do método de análise dialética. Quando a vanguarda da vanguarda revolucionária tem uma tradição filosófica reducionista e seguidista é basicamente impossível criar uma literatura autóctone dialética sobre o mundo.

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Assim alguns ziguezagues na defesa de certas teses são quase incompreensíveis para quem vive fora do Brasil. Tomemos como exemplo a questão chinesa e o PC do B. O PC do B é criado em 1961, a partir de um racha do PCB, tomando a China como modelo de socialismo e chamando a URSS de revisionista e capitalismo de Estado por conta da crítica ao stalinismo. O objeto deste texto não é estudar o fenômeno stalinismo (aqui não tomado como acusação ou xingamento, mas como modelo teórico), mas é curioso entender que o maoísmo nunca foi stalinista. Stálin não tinha discordâncias com Lênin ou Trotsky sobre um modelo industrial desenvolvimentista de socialismo, o maoísmo chinês era um projeto de socialismo agrário cuja questão do desenvolvimento industrial era secundária (bom lembrar que os herdeiros de Mao foram derrotados na luta pelo poder e a chamada “Revolução Cultural”, o ano zero da nova cultura, abortado), não, Mao não pensou a moderna China. É responsável por ela por ter feito a guerra de libertação/revolução, mas o pensamento desenvolvimentista chinês atual foi pensado pela ala antitética a ele no partido.

Por conta desta “virada” na China, o PC do B abandonou o modelo chinês e adotou o modelo “albanês” (por mais insensato que isto posso parecer, afinal, a Albânia só existiu e existia (apesar da crítica dos Albaneses à URSS) por conta da URSS. Por fim, com a derrota do bloco socialista, a Albânia naufragou em doze segundos. Sem nenhuma crítica às críticas que fizeram à China, o PC do B prontamente se refez chinês, como se nada histórico houvesse acontecido em 3 décadas.

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Não, o artigo não é uma crítica ao PC do B, até porque o campismo não é monopólio do PC do B, o campismo no Brasil junta siglas tão diferentes como o PC do B e o PCO (as análises internacionais deles parecem ser feitas por uma mesma e só pessoa), é só para exemplificar os ziguezagues do campismo. Com a derrota do bloco socialista (e não fracasso, a escolha de palavras não é aleatória), era necessário para quem sempre seguiu um “campo” eleger um novo “modelo de socialismo”. A China foi reabilitada e passou de país revisionista de capitalismo de Estado a modelo de sucesso do socialismo.

Não sou especialista em China e o motivo deste artigo não é criticar os chineses, mas é assustador que agora qualquer pessoa que queira simplesmente debater se existe ou não socialismo na China possa ser tratado como traidor ou “quinta coluna” (formas comuns de se evitar qualquer debate que aborde contradições da teoria).

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Na teoria comunista, tanto marxista quanto leninista, o essencial é “expropriar os expropriadores”, que os meios de produção estejam na mão da classe trabalhadora e não da burguesia. Ter ou não um partido comunista no poder de per si não qualifica nenhum país socialista. A forma nova de poder na China pode ou não ser um projeto que ao fim e ao cabo resultará em socialismo, ela é tudo, menos inquestionável teoricamente, como alguns agora sustentam que deva ser seu tratamento.

Questionar parâmetros de socialismo está muito longe deste fla x flu campista que acusa qualquer um que critique China ou Rússia (esta, sem dúvida, está longe de ser socialista) como agentes da OTAN, ou ingênuos amestrados pela mídia capitalista. Este modo de proceder se parece muito com a de lunáticos bolsominions, para quem todos que discordam dele são comunistas.

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Não, senhores, vocês não tem um selo de propriedade da categoria marxista, ou comunistas e não são quem determina se João é comunista ou Maria é revisionista.

O campismo precisa de pouca ou nenhuma dialética, até porque, com dialética demais suas certezas desabam como um castelo de areia.

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Vejam o tratamento dispensado no Brasil ao duguinismo. Um dos maiores papas do duguinismo no Brasil é Pepe Escobar, tratado como gênio da raça, seus artigos, nos quais Putin salva a humanidade do imperialismo e a Rússia é a herdeira legítima da URSS, são lidos por leitores ávidos em provar sua fidelidade não se sabe a que mesmo. Putin é legítimo herdeiro daqueles que assaltaram o Estado Soviético e transformaram a propriedade coletiva em propriedade privada. É uma das lideranças dos ex KGH ou ex membros do PCUS que, de uma hora para outra, pilotando uma contrarrevolução até hoje muito mal entendida ou explicada, transformaram o patrimônio coletivo em propriedade de meia dúzia de 3 ou 4 bilionários russos, com riquezas que nem Rasputin conseguiria explicar. São esses saqueadores do socialismo que estão no poder na Rússia (e não na União Soviética). São uma nova classe de capitalistas, saqueadores da Revolução traída, que hoje se assenhoraram do Estado. Tratá-los como herdeiros da revolução é uma traição a Lênin.

Para os campistas, que vivem num eterno Fla x Flu, ou você torce para o Biden, ou torce para o Putin. Uma lástima, ou não leram ou abandonaram as lições de Lênin em 1914, quando um bando de potências capitalistas resolveram empreender a luta entre si e ele falou em alto e bom som: “nossas armas têm que ser apontadas contra os nossos generais, o proletariado não deve se matar em nome da burguesia”. O princípio das guerras justas e injustas e da autodeterminação dos povos é um paradigma político socialista que não pode ser quebrado sem se passar indelevelmente par ao lado do social chauvinismo. Aliás, convém lembrar que Lênin era inimigo juramentado do Social Chauvinismo russo, do qual Dugin é herdeiro, da “glória da Rússia dos Czares”. Ao começar a guerra contra a Ucrânia dugin e Putin atacaram exatamente Lênin, declaradamente, dizendo que a “Ucrânia era uma invenção leninista” (aliás é muito importante reler como Lênin tratava questão da auto-determinação dos povos).

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O mundo vira um tabuleiro de war, os “analistas campistas” se consideram deuses enxadristas, e só eles conseguem compreender o mundo, e os povos, as classes sociais e as pessoas tornam-se pequenos detalhes desprezíveis. É uma forma hipostasiada de leitura do mundo, no qual a conclusão é dada anteriormente a qualquer fato, que só são juntados para reforçar o argumento que deve sempre balizar o contorcionismo campista. 

Exemplo? Afeganistão. Um dos melhores conhecedores do Afeganistão contemporâneo foi Robert Fisk. É fundamental ler o que ele diz da guerra do Vietnã. Ele reconhece que o governo afegão que mais deu direitos civis e mais fez pelo país, em termos de desenvolvimento, foi o governo socialista, apoiado por Moscou. Mas relata como este governo se manteve, em boa parte, por conta do apoio militar russo e como a invasão soviética criou um terreno fértil para o nascimento dos movimentos mujahedin. Um invasor cheio de boas intenções é sempre um invasor. Assim a Arábia Saudita e os EUA intervieram e financiaram não uma guerrilha, mas um “exército libertador”, cheio de estrangeiros também, de jovens muçulmanos prontos para empreender uma guerra santa contra os infiéis. Estes soldados se aliaram ao que havia de mais reacionário na sociedade talibã, velhos líderes feudais ressentidos dos poderes dados a camponeses e mulheres, mas tiveram apoio de amplos setores de um país muito tribal e atrasado.

Vejam, na análise acima não há nenhuma apologia aos mujahedin que acabarão por descambar e formar o talibã, mais de uma década depois, mas, objetivamente, toca nas contradições de uma sociedade que via os russos como invasores. Após a retirada russa o governo socialista ainda conseguiu sobreviver alguns anos, ao fim e ao cabo foram destituídos por uma guerrilha contrarrevolucionária, teocrática, fundamentalista, misógina, feudal, anticivilização. Falar isto antes da intervenção dos EUA no Afeganistão era um truísmo, não era algo hegemônico, era um consenso na esquerda.

Eis que os antigos aliados tornam-se inimigos (não se sabe bem até que ponto) e a indústria da guerra americana resolver eleger Bin Laden como novo inimigo público para manter a indústria do medo e da guerra ativa. Os EUA intervem no Afeganistão e “o libertam do Talibã”, na verdade estabelecem um governo Títere pró Otan, que foi mantido pelo envio maciço de armas e homens. Sequer chegam a uma relativa estabilidade do país como na era pró Rússia. Na saída meio controversa, na qual o Departamento de Estado Estadounidense faz um acordo e deixa uma grande quantidade de armas em solo talibã , nossos analistas campistas esquecem todas as lições de Lênin e celebram a vitória da teocracia misógina.

O campismo é uma espécie de fórum de torcidas organizadas. Usam de frases feitas do tipo “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”, bem, uma leitura desatenta de Lênin daria a eles a ideia de que no marxismo não é assim. Aliás, um aliado tático sequer é um amigo, diria Lênin, é só um aliado tático, era o que ele dizia dos alemães, depois do tratado de paz de Brest Litovsky. Ele deixava claro que eram permanentes inimigos de classe e que a aliança defensiva era contingente e passageira.

Pois bem, com a saída dos estadounidenses do Afeganistão vários analistas brasileiros exultaram com a “vitória do povo afegão”. Primeiro a categoria povo foi usada sem nenhum conteúdo de classe, porque se confundiu o exército talibã em armas com o povo afegão, aliás, metade já do povo afegão está alijada do tal exército afegão, já que as mulheres estão proibidas de atuar em basicamente todos os processos da vida adulta sem consentimento de seus pais, maridos ou irmãos. São seres sem direitos, sem escola, sem trabalho, silenciadas e escravizadas. Qualquer marxista-leninista com o mínimo de análise de classe diria que o Afeganistão estava numa encruzilhada, livrara-se de um país colonizador para cair nas mãos de um exército teocrático protofacista. Impossível exultar em tão evento.

As análises campistas são simplistas, infantis, maniqueístas. Negam-se a contradições. Na guerra da Rússia contra a Ucrânia transformam a Rússia num herói marvel libertador do mundo com relação à OTAN, calam-se diante de uma guerra de invasão e reduzem um país de 40 milhões de pessoas ao Batalhão de Azov. Não há contradição nesta guerra, é o santo guerreiro contra o dragão da maldade. Estes analistas prometem “um mundo multipolar” ao fim da guerra assim como anunciaram, faz 10 meses, a vitória da Rússia em 2 semanas.

Não, guerras inter-imperialistas sempre as houve, entre os países centrais do sistema e aqueles que querem uma nova repartição do mundo, pouco importando se o passado deste país foi socialista. Para se entender a justeza de uma guerra, para os marxistas, o que importa é analisar o caráter de classe de uma guerra e seus objetivos de libertação. Não há uma coisa nem outra na atual guerra. Houve até um crítico meu reduzindo a Rússia a um país produtor de commodities, quase um Zambeze, para passar pano para o duguinismo. O campismo precisa de modelos perfeitos e não sobrevive a críticas, porque seu pensamento se parece muito a um pensamento de seita.

Fazer uma crítica dialética da guerra, sem “torcer para a Rússia” ou para a “Otan”, aliás, é uma imbecilidade dizer que a única posição possível é torcer para a vitória de um ou outro país, em lugar da distensão pacífica do conflito que garanta a segurança da Rússia e a existência da Ucrânia, que, aliás, parece ser a única saída possível deste atoleiro, já que a guerra não dá sinal nenhum de extenuação. De um lado a Rússia usará indefinidamente do dinheiro da exportação do petróleo para financiar sua guerra, do outro lado a Ucrânia contará indefinidamente com o apoio da Otan, com as indústrias militares de um lado e de outro exultando com a retroalimentação e justificação de seus orçamentos militares.

De acordo com os campistas e pelo prisma deles, Lênin deveria ter se engajado na guerra de 1917, talvez a favor da Alemanha, para lutar contra a hegemonia inglesa, de repente, de um conflito intercapitalista surgiria um mundo “multipolar”. Lênin não tinha esta ilusão, condenou os dois bandos de exércitos salteadores, exortou o proletariado a atirar nos seus generais.

Graças a sua dialética tivemos a Revolução Russa e o século XX foi o século do socialismo. Lênin nunca foi um campista!

Devemos voltar ao Lênin 1914, a dialética não deve nunca ser confundida com o campismo.

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