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Roberto Bueno

Professor universitário, doutor em Filosofia do Direito (UFPR) e mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC)

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Dever de lealdade

Submeter a conduta aos estritos ditames constitucionais é dever superior daqueles que recebem a incumbência de servir ao povo em cargos de representação e mando, e no caso das Forças Armadas, que honrem a confiança nelas depositada mostrando que a superior coragem reside em jamais apresentar armas ao povo senão em sinal de devoção e respeito

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Os tempos em que vivemos são de rara crise e de desfecho imprevisível, mas que apontam para cenário de colapso social. O Brasil já vive uma tragédia sem precedentes do ponto de vista sanitário e o presente número de mortos informados pelas estatísticas oficiais dista vastamente de retratar a realidade segundo cálculos de diversos especialistas, embora o governo militar-bolsonarista tente ocultar até mesmo estas fictícias estatísticas oficiais. Lamentavelmente, as corretas informações mais graves emergirão a médio prazo sob a condição da realização de pesquisas científicas, que não deixarão de recorrer a comparação do número absoluto de mortes registradas neste período pandêmico com as ocorridas em anos anteriores sem desprezar a análise com o registro de causa mortis. Apenas então poderemos ter uma visão realista sobre a tragédia que assola o Brasil nestes dias sob uma administração militar da mesma inspiração neofascista que governa os EUA, matriz e diretor da política interna e externa brasileira.

Embora avassaladora, a dimensão de nossa tragédia não foi devidamente a mensurada. Nefasto é a comportamento das autoridades a redigir e seguir ordens manifestamente absurdas de não tomar as medidas corretas para impedir o alastramento dos contágios e a disseminação das informações sobre a gravidade dos acontecimentos que não foi compreendida pela população, como é possível observar em várias metrópoles. É isto leal com o compromisso público assumido?

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Estando já contratada a tragédia, o que está em causa neste momento é a sua dimensão. É isto o que está sendo definido nestes dias tanto pela ação quanto pela omissão dos atores sociais e das autoridades, e estas têm especial responsabilidade sobre toda a tragédia em curso. Desconsideram que a tormenta será vencida, mas deixarás rastros em forma de corpos e que à mensuração da tragédia sucederá a cobrança de responsabilidades não apenas na esfera política, mas também judiciais. As autoridades civis e militares desprezam as seríssimas consequências de suas decisões que estão a causar dezenas de milhares de mortes potencializadas ainda por suas decisões em matéria de política econômica que ao implodir os parâmetros mínimos de convivência social aproximam o perfil da administração ao neofascismo.

Em recente entrevista publicada em revista semanal de circulação nacional o General Ramos sugeriu que ordens “absurdas” de outros poderes não seriam seguidas e já no dia seguinte, 14.06.2020, a declaração encontrou amparo em nota da Presidência da República também firmada pelo Vice-Presidente, Gen. Hamilton Mourão, e o Ministro da Defesa, Gen. Fernando Azevedo e Silva. O teor da nota é enfrentar a decisão do Ministro Fux, do STF, que não recepcionou a interpretação golpista do art. 142 sustentada por segmentos militares e civis como o constitucionalista Gandra Martins. Em seu corpo a nota sustenta que a Presidência da República, no comando das Forças Armadas, não aceitará cumprir ordens de outros poderes da República que considerem ser “absurdas”, e o fato de que o Ministro da Defesa, um General da ativa (que legalmente não poderia ocupar o cargo) firme a nota compromete a posição das Forças Armadas ao descortinar o horizonte de que estaria disposta a cumprir uma ordem manifestamente ilegal do Presidente da República de descumprir decisão judicial por ele próprio atribuir-se o papel de julgar o que é e o que não é “absurdo”, legal e ilegal.

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Em face de tal nota da Presidência da República as Forças Armadas não vieram a público em uníssono para desmentir o teor do propósito de insubordinação e subversão da ordem constitucional. Neste contexto, e dado que a nota da Presidência da República alega não estar submetida a ordens “absurdas”, é indispensável questionar se as Forças Armadas não consideram também absurdas as ordens da Presidência da República que: (a) clamam dispor de poderes para não cumprir a Constituição; (b) propõem fechar o Supremo Tribunal Federal (STF) e, assim, afetar a normalidade do funcionamento do Poder Judiciário; (c) que sob as condições anteriores, “‘a” e “b”, ocorre a deslegitimação do Poder Legislativo e, por conseguinte, do equilíbrio dos poderes ao rebaixar este poder de representação popular, condicionando as suas deliberações ao que o Poder Executivo repute ser “absurdo”; (d) implodem a estrutura da divisão de poderes, chave de organização das democracias ocidentais e, consequência, extermina uma das cláusulas pétreas da Constituição Federal cuja intangibilidade é unanimidade na doutrina como na jurisprudência constitucional. Os Generais consideram que estas decisões políticas não são “absurdas” e que devem ser seguidas mesmo quando a sua inconstitucionalidade é manifesta?

A submissão militar à ordem constitucional não é um favor ou gentileza senão um altíssimo dever funcional, trata-se de dever perante a nação em face da alta responsabilidade de portar armas que lhe é confiada para proceder à defesa da soberania nacional em face de inimigos externos, pois para arbitrar conflitos no plano interno entre os cidadãos existem as instituições e as devidas forças policiais e judiciais. Inexistem inimigos no plano interno e as Forças Armadas não devem ser mobilizadas para tanto nem sequer quando travestidas de Polícias Militares, cada vez menos polícias e cada vez mais militares. Nesta esfera interna, portanto, não cabe às Forças Armadas arrogar-se a condição de árbitro de conflitivos que transcorrem eminentemente no plano de adversários políticos, de projetos de país concorrentes, de escalas de valores civis concorrentes, pois o povo brasileiro não outorgou a elas tal competência em seu pacto constitucional de 1988.

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O cumprimento de ordens devem ser consideradas, prima facie, “absurdas” quando provenientes de autoridade incompetente para manifestar-se a este respeito. A manifesta inconstitucionalidade de algumas orientações e decisões políticas do regime militar-bolsonarista que vem facilitando a ocorrência da morte de dezenas de milhares de brasileiros(as) tornará os militares responsáveis ante a consciência do povo, o tribunal da história e, logo, dos próprios órgãos jurisdicionais contra os quais hoje manifestam publicamente a intenção de insubordinar-se.

Quanto às ações genocidas de militares contra o seu próprio povo convém recordar o caso de nosso vizinho país sul-americano, a Argentina. Está cristalizada a imagem de tantos militares genocidas argentinos como os altos comandos, o então Presidente Rafael Videla (29.03.1976–29.03.1981) e do Almirante Emílio Massera (“Comandante Zero”) (1925-2010), ambos condenados por crimes contra a humanidade, sentados nos bancos dos réus sob vaias e rechaço nacional da população de seu país, pois por algum mágico milagre, os que perecem sob tortura e têm os seus corpos dilacerados, podem ser enterrados ou sumidos para sempre, mas isto não ocorre com as suas memórias, que sobrevivem, buscam justiça e ganham respeito. A sua imagem não se esvai ou esfuma com o passar dos anos e das décadas, mas permanece com um ponto de justiça a reclamar a realização.

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Os setores militares brasileiros que ameaçam com insubordinação e subversão da ordem constitucional sempre e quando o STF decida de forma que o regime militarista-bolsonarista avalie “absurda”, mas não se constrangem em seguir ordens do Poder Executivo manifestamente inconstitucionais e “absurdas” que hipotecam a vida de dezenas de milhares de brasileiros(as). Ao submeter-se às ordens absurdas oriundas do próprio Governo militar-bolsonarista, os militares brasileiros já têm em sua extensa conta não saldada as consequências funestas da ditadura militar de 1964, e agora estão a incorrer em novo e gravíssimo equívoco histórico ao potencializar política genocida.

O quadro de políticas em tese ilegais do Governo militar-bolsonarista inclui a persecução judicial de autoridades públicas como Governadores e Prefeitos que comprem respiradores com preços acima do mercado (os únicos disponíveis à venda em tempos de crise) em face de supostos crimes de ordem econômica, mas não se exasperam e perseguem judicialmente a omissão do Governo Federal em realizar a urgente compra de respiradores, causadora direta a morte de milhares de indivíduos. Há disposição para seguir ordens para a persecução imediata de políticos que tentam salvar vidas, mas nenhuma contra políticos que contemplam o acúmulo de cadáveres.

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A potencialização de política sanitária e econômica cuja consequência é a potencialização de mortes e destruição da estrutura econômica do Estado encontra uma de suas raízes na grave distorção de que as Forças Armadas foram sendo embarcadas para a execução de um projeto de Governo, e não de Estado, aparentando cooptação através de três dezenas de milhares de cargos na administração pública. Isto facilitou a distorção do que significa o dever funcional de servir ao Estado e de servir a um Governo que pretende eludir freios e limites constitucionais.

Esta tendência neofascista foi sendo percebida e eclodiu nestes dias ao ser tornada pública pelo alto comando militar norte-americano, ao informar toda a cadeia de mando de que não seriam cumpridas as ordens do Poder Executivo para aplicar forças militares para controlar as massivas e legítimas manifestações públicas antirracistas que ocorrem neste momento nos EUA em plena conformidade com o direito de manifestação constitucionalmente previsto. A esta manifestação do Comando se somaram diversas notas publicadas por militares de alta patente, como foi o caso do General Jim Mattis, de inédito teor nos EUA por sua dureza ao descrever Trump, Presidente a quem serviu, como um “traidor da Constituição”. Em sua carta Mattis comparou as estratégias de Trump com as utilizadas pelo nacional-socialismo na década de 1930, dividindo para governar.

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Em suporte a estas posições também vieram a público notas de militares como as do reservista General Allen e do ex-chefe do Estado-Maior Conjunto, Mike Mullen, todos compartilhando a visão de que não era aceitável o emprego das Forças Armadas nos termos propostos pelo Presidente Donald Trump, e que ele se tornou uma ameaça à ordem constitucional dos EUA. Com isto o que se observou foi que as Forças Armadas dos EUA demonstram compreender precisamente que é seu dever submeter-se antes à ordem constitucional que estrutura o Estado do que ao mando direto de eventual Governo que pretenda instrumentalizá-la para transgredir o pacto político. Ante uma ordem ilegal da Presidência da República, “absurda”, os militares dos EUA reverenciaram o pacto constitucional através do qual o povo americano lhes confiou as armas. Qual a opção dos generais brasileiros, a soberania popular ou o poder?

As altas autoridades do Estado, os militares e demais servidores, têm um inarredável dever de fidelidade ao povo, real e legítimo titular do poder político em um Estado democrático de direito. É o povo que outorga poder às autoridades para o desempenho de suas respectivas funções. Paralelamente a estes poderes, e em consequência direta, advém responsabilidades das autoridades perante a nação e o Estado em derivação direta de seu juramento de lealdade à Constituição, a qual devem elas buscar da concreção em suas ações funcionais.

Submeter a conduta aos estritos ditames constitucionais é dever superior daqueles que recebem a incumbência de servir ao povo em cargos de representação e mando, e no caso das Forças Armadas, que honrem a confiança nelas depositada mostrando que a superior coragem reside em jamais apresentar armas ao povo senão em sinal de devoção e respeito, e baioneta calada tão somente para defendê-lo de seus reais inimigos externos e ameaça à soberania. Em tempos de crueza e perigos extremos a reiteração da advertência do moderado Ulisses Guimarães mantém a atualidade e reclama ser repetida à exaustão: “Traidor da Constituição é traidor da Pátria”.

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