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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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Dia das crianças para meninos nas ruas do Recife

As cidades se revelam mais nuas quando amanhecem. Não faz muito, quando eu caminhava às 6 da manhã pelo centro da cidade, pude notá-los. Os seus corpos enchiam a paisagem das ruas e avenidas do Recife. Amontoavam-se, como se, enfileirados, tangidos pela ordem do acaso, estivessem dispostos como cadáveres.

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As cidades se revelam mais nuas quando amanhecem. Não faz muito,  quando eu caminhava às 6 da manhã pelo centro da cidade, pude notá-los. Os seus corpos enchiam a paisagem das ruas e avenidas do Recife. Amontoavam-se, como se, enfileirados, tangidos pela ordem do acaso, estivessem dispostos como cadáveres.

Ninguém precisava chutar seus corpos para ter a certeza de se alguns deles estavam mortos. Se o fizéssemos, perderíamos a metáfora, embora ganhássemos o status de mensageiro da boa-nova, ao anunciar aos passantes, “este menino está morto”. Não, o nosso desprazer estético é mais feroz. Dizemos como cadáveres, porque os meninos dormiam, e sabemos que dormiam porque estavam imóveis, no chão, de bruços, ou com a cara para o sol, com a boca aberta. Pareciam com cadáveres porque alguns dormiam sem fechar os olhos: ficavam a olhar vítreo para as marquises dos prédios, ao lado de floristas, íris do olho à meia-lua. Mais lembravam a foto do cadáver de Che Guevara, sem camisa abatido na Bolívia. A diferença é que eram mais novos, e não estavam caídos por causa mais nobre além da urgente necessidade, de comida ou do afeto que o tóxico dá.

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As ruas, as avenidas onde jaziam têm nomes poéticos, belos: da Aurora, do Sol, da Boa Vista. Mas essa poesia não lhes colava na pele, ou melhor, neles se colava uma poesia invisível, até porque ninguém mesmo os via. Eles eram à semelhança de ratos pela madrugada, porque com ratos se confundiam ao sair das cavernas e cloacas da cidade, no escuro da noite. Então eles ficavam todos negros, na pele ou na camuflagem dos animais que corriam pelo asfalto da avenida. Ao amanhecer, jaziam como defuntos, misturados a latas e papéis no chão, acumulados ao longo da noite. 

Durante o dia, mais tarde, estariam em grupos na primeira refeição, com o tubo de cola à boca, que aspiravam. Então, mesmo em grupos, aos bandos, ninguém os via, ou melhor, às vezes, sim, quando rondavam como símios as bolsas e os relógios dos adultos. Viam-se sem serem vistos, assim como vemos e evitamos no solo um buraco, um obstáculo, ou grandes montes de merda. As pessoas faziam a volta e tratavam de assuntos mais sérios. Todos estavam já acostumados àqueles figurantes, no cenário. Os meninos eram personagens que nem falavam, porque estavam sempre em porre de sonho, delirantes, com a voz trôpega, plenos do sonho que a cola dá. De repente, alguns deles, os mais sóbrios, os que podiam, saltavam para a traseira de um ônibus. Então os meninos se transformavam em morcegos, à beira da morte nos testes que o motorista fazia, ao frear e acelerar e a fazer voltas velozes com os ônibus, para ver se os morcegos se estendiam no chão.

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Olhando-os bem, podia-se perceber que despertavam o amor e a compaixão em algumas almas caridosas. Olhando-os às seis da manhã, como quem faz um exame de corpo de delito, podiam-se ver os traços deixados pelo coração da melhor gente cidadã. Os meninos imóveis, a ressonar, tinham roupas de grife, bermudas, camisas com etiquetas. Roupas sujas, cheias de grude, é verdade, mas roupas caras. Ao vê-los assim, no desprezo da cidade, ficávamos a imaginar o impulso que movia o coração da gente que somente lhes queria bem. Ao chamamento de instituições religiosas, “olha o teu irmão”, ao imperativo de que Deus também podia estar naqueles meninos de rua, as boas almas do ramo doavam algo mais chique.

Mas o detalhe que unificava os meninos na tendência da moda era muito estranho. Todos estavam descalços. Todos. Devia haver alguma lei que impedisse os corações caridosos de caírem até os sapatos. Ou será que a gente mais cristã, quando via os meninos, não lhes via os pés? Ou será que achavam, os corações em boa fé, que andar descalço pelas ruas fosse uma festa? Talvez a moral cristã se preocupasse com a nudez das coxas até os ombros. Ou talvez, quem sabe, os meninos recebessem tênis e os atirassem às águas do Capibaribe, que por ser um belo rio gosta de andar calçado. Ou talvez os sapatos fossem um bem supérfluo para os pés dos meninos, assim como os bonés, porque neles não se viam bonés, como é costume nos irmãos caridosos de sua mesma idade. Ou talvez, enfim, os sapatos fossem trocados por cola, de sapateiro, como me garantiu um senhor educado, com nojo: “eles vivem de cola”.

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A um dos meninos, certa manhã, perguntei a idade. “Onze anos”, ele me respondeu. E eu, com minhas exatidões burras, de classe média: “Vai fazer ou já fez?”. Silêncio. Eu insisti, crente de que ele não me havia entendido. “Você faz anos em que mês? Quando é o seu aniversário?”. Então ele me ensinou, antes de correr até a esquina:

 

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– Tio, eu não tenho aniversário!.

 

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E me deixou mudo e parado a olhar inútil o rio. 

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