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Ricardo Musse

Professor do departamento de sociologia da USP

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Dialética da natureza

Engels também apresenta a dialética como essencial na tarefa de ordenar o caos das novas descobertas científicas, que se sucedem atropeladamente, aponta o professor Ricardo Musse

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Apresentação do livro recém-lançado de Friedrich Engels

O final da década de 1840 promoveu transformações decisivas na história da Europa e mudanças significativas na vida política e pessoal de Karl Marx e Friedrich Engels. Após a derrota política e militar da Revolução de 1848 na Alemanha, ambos – perseguidos em seu país natal por conta de suas atividades revolucionárias – refugiaram-se na Inglaterra.

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Engels chega em Londres em 1850. Engaja-se inicialmente nas tentativas de unificar as diferentes frações derrotadas bem como no amparo e assistência financeira aos exilados oriundos de todas as partes do continente. A expectativa de uma retomada da insurreição na Europa mostra-se, no entanto, infundada. A própria Liga Comunista – na qual Engels e Marx eram membros do comitê dirigente – passa por um processo de fragmentação que culmina com a sua dissolução, proposta por Marx, em 1852.

Para sobreviver, Engels opta por retomar seu emprego como funcionário da Ermen & Engels, cargo já exercido por ele em 1842-1843 (quando coletou o material para a redação de A situação da classe trabalhadora na Inglaterra). Para tanto é forçado a reatar relações com seu pai, um dos sócios da fábrica têxtil, com quem estava rompido desde 1844. Em novembro de 1850 Engels muda-se para Manchester, sede da empresa, cidade que detesta, na qual, porém, irá permanecer durante quase 20 anos.

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Em 1860, com a morte do pai, a situação econômica de Engels sofre uma alteração relevante. Como resultado das negociações familiares acerca da herança coube a ele, além de uma quantia em dinheiro, a parte do pai na sociedade com os irmãos Ermen, situação regularizada apenas em 1864. O desafogo financeiro é, no entanto, contrabalançado pelo incremento dos afazeres e da responsabilidade na condução da indústria. Só em 1869, consegue vender sua parte na fábrica e desembaraçar-se para sempre das atividades empresarias. Ele relata que se sentiu nesse momento tomado por uma sensação de alforria.

Neste período, entre os 30 e os 49 anos de idade, Engels, em seu tempo livre, redigiu – além de uma correspondência volumosa, quase diária com Marx – centenas de artigos de jornal; alguns poucos publicados sem a menção de seu nome nas colunas de jornais norte-americanos em que Marx era titular. A grande maioria destes textos são comentários de acontecimentos políticos ou econômicos no âmbito das relações internacionais. Qualificados em geral como artigos de circunstância, quando não como esforços de sobrevivência econômica, ocuparam um lugar menor na recepção da obra dos fundadores do materialismo histórico. Hoje, no entanto, novos estudos deixam patente que subjaz ao conjunto uma reflexão sistemática de Marx e Engels acerca das questões de geopolítica.

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Escreveu, durante o ano de 1852, uma série de artigos sobre os eventos do final da década de 1840 reunidos no livro Revolução e contra-revolução na Alemanha e também – espaçados no tempo – inúmeros ensaios sobre a “questão militar”. Em 1867, Marx lança o primeiro volume de O capital. Engels adota como tarefa contribuir na divulgação do livro. Publica então inúmeras resenhas em jornais e periódicos de diversos países e de diferentes tendências políticas. Neste esforço chegou até mesmo a redigir um resumo de O capital.

Em 1870, Engels instala-se definitivamente em Londres. Só então, destituído da condição de industrial, passa a fazer parte da Associação Internacional dos Trabalhadores – fundada em 1864 e comandada, em larga medida, por Karl Marx –, tendo sido eleito membro de seu Conselho Geral. Neste posto, acompanha a derrota da França na guerra franco-alemã (janeiro de 1871) e os acontecimentos da Comuna de Paris (18 de março–28 de maio de 1871). O massacre dos participantes da Comuna e a perseguição aos ativistas políticos encetada em toda a Europa contribuiu para a aprovação, no Congresso de 1872, da proposta de Marx e de Engels de transferir a sede da Internacional para Nova York. Divergências entre os seguidores de Karl Marx e o grupo comandado por Mikhail Bakunin acerca das táticas e estratégias da classe trabalhadora levaram à dissolução da Associação em 1876.

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Mesmo envolvido diuturnamente na vida política – sobretudo depois da fundação do Partido Operário Socialdemocrata da Alemanha ocorrida em Eisenach, em agosto de 1869 –, Engels encontra tempo para retomar a sua produção intelectual. Seu primeiro trabalho de fôlego após sua mudança para Londres, o livro Sobre a questão da moradia, publicado em junho de 1872, retoma questões e reflexões pouco desenvolvidas em sua obra inicial A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845).

O seu projeto intelectual, entretanto, caminhava em outra direção. Ele foi exposto pela primeira vez, em maio de 1873, numa carta a Marx, sob a forma de esboço de uma obra de dimensões monumentais a ser intitulada Dialética da natureza. Engels escolhia assim como campo prioritário de suas investigações duas áreas de conhecimento imbricadas na época do Idealismo alemão, em particular na obra de G. W. F. Hegel, a “filosofia” e as “ciências naturais”, mas já há muito na prática dissociadas.

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Gustav Mayer, o principal biógrafo de Friedrich Engels, conta que ele iniciou seus estudos sistemáticos sobre as ciências naturais em 1858, ainda no período da estadia em Manchester.

No inicio da década de 1840, Engels dedicara-se à filosofia. Nos anos de 1841 e 1842, cumprindo serviço militar em Berlin, frequentou aulas dessa disciplina na Universidade local e se aproximou do círculo dos jovens hegelianos, tendo inclusive publicado artigos contra o então catedrático Friedrich Schelling. A sua colaboração com Marx no período de Bruxelas se deu sobretudo neste campo. Publicaram, em 1845, A Sagrada família: ou a crítica da Crítica crítica: contra Bruno Bauer e consortes e em seguida redigiram os manuscritos – só publicados em 1926 – de A ideologia alemã, considerado por muitos como o marco de fundação do materialismo histórico. Marx, num texto célebre de 1859, descreveu o empreendimento como um “acerto de contas com nossa antiga consciência filosófica. O propósito tomou corpo na forma de uma crítica da filosofia pós-hegeliana […] Abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos, tanto mais a gosto quanto já havíamos atingido o fim principal: a autocompreensão”.

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Os assuntos envolvidos na planejada Dialética da natureza passavam longe dos tópicos postos na pauta pelos jovens-hegelianos: crítica da religião, da política e do Estado, supressão da filosofia, lugar e papel da consciência etc. O propósito do livro, como o título indica, era examinar a questão do método de investigação e de exposição e sua relação – de mão dupla – com as recentes descobertas das ciências naturais.

O próprio Engels irá justificar, anos depois, esse novo direcionamento como resultante da “transformação da filosofia”. Segundo ele, depois de 1848, o Idealismo Alemão saiu de cena, ofuscado pelo impressionante desenvolvimento das ciências naturais, movimento este impulsionado (mas também fator determinante nesse processo) pelo vertiginoso crescimento da produção industrial na Alemanha. O que se lia e discutia então não eram mais as obras de Kant e Hegel, mas a vertente do materialismo – que Engels qualificava como “vulgar” – cujos expoentes eram Ludwig Büchner e Karl Vogt.

A relação entre a filosofia e as ciências naturais foi abordada no decorrer do século XIX, entre outros, por Hegel e por August Comte. Engels rechaça em Hegel a tese de que a natureza, eterna repetição, não era suscetível de um desdobramento histórico, atributo exclusivo, no sistema idealista, da Ideia ou da vida do espírito. Discorda, por sua vez, do propósito essencialmente classificatório da filosofia positiva de Comte, na qual identifica também a consideração das ciências e da própria natureza como estáticas.

Seguindo os princípios do materialismo histórico, Engels inicia a investigação delineando a gênese da dialética moderna, num percurso que começa na Grécia e avança até as descobertas recentes das ciências naturais.

Nesse panorama, para melhor destacar a forma e o conteúdo da dialética, Engels a contrapõe à “metafísica”, nomenclatura pela qual designa o método filosófico rival e concorrente da dialética. Para o adepto desta metodologia, as coisas e suas imagens no pensamento, os conceitos, são objetos isolados de investigação; objetos fixos, imóveis, observados um após o outro, cada um em si mesmo, como seres permanentes.

A atribuição de rigidez ao objeto, a descrição precisa de seus contornos, a determinação do mundo como um conjunto de coisas acabadas e imutáveis, a observação estrita do princípio da não-contradição, a conexão irreversível de causa e efeito devem sua plausibilidade, em grande medida, à sua proximidade com o senso comum. No entanto, adverte Engels, apesar de útil entre as quatro paredes de uma casa, o senso comum revela-se pouco apropriado quando se arvora em método científico.

Quando aplicado conscientemente na pesquisa científica, o “método metafísico” revela com nitidez suas limitações. Unilateral e abstrato, esse procedimento enreda-se, conforme Engels, em contradições insolúveis: atento aos objetos concretos, não consegue enxergar as relações; congelado no momento presente, não concebe a gênese e a caducidade, concentrado na estabilidade das condições não percebe a dinâmica, “obcecado pelas árvores não consegue enxergar o bosque”.

A dialética, nessa apresentação dicotômica, surge, quase ponto a ponto, como o oposto simétrico do método metafísico. Não delimita de modo isolado os objetos, nem os toma como algo fixo e acabado, ao contrário, investiga os processos, a origem e o desenvolvimento das coisas e as insere em uma trama complexa de concatenações e de mútuas influências, onde nada permanece o que é e tampouco na forma como existia. Nela, os dois pólos de uma antítese, apesar de seu antagonismo, se completam e se articulam reciprocamente. A causa e o efeito, vigentes em um caso concreto, particular, se diluem numa trama universal de ações recíprocas, onde as causas e os efeitos trocam constantemente de lugar e o que, antes, era causa, adquire, logo depois, o papel de efeito e vice-versa. Tampouco vigora o princípio da não-contradição, pois pelo menos no mundo orgânico, “o ser é ele mesmo, o que é, e um outro”.

Essa bipartição metodológica é apresentada, à semelhança do modelo ensaiado por Hegel na Fenomenologia do espírito, como etapas e resultados – ou melhor, como “figuras” – de uma progressão que é ao mesmo tempo lógica e histórica.

No painel desdobrado por Engels, uma intuição primitiva e ainda simplista da dialética – a consideração do mundo como perpassado por uma trama infinita de concatenações onde nada permanece – teria predominado entre os antigos filósofos gregos (sobretudo em Heráclito). Mas apesar de congruente com a verdade das coisas, essa visão, incapaz de explicar os elementos isolados que constituem o mundo, teve, logicamente, que ceder lugar a uma concepção que destacasse os elementos de seu tronco histórico ou natural, investigando-os separadamente, cada um por si, em sua estrutura, causas e efeitos.

Historicamente, esse novo procedimento só se afirmou completamente a partir da segunda metade do século XV, com o nascimento das modernas ciências da natureza. Os métodos dessas ciências, em especial, a análise da natureza em suas diferentes partes, a classificação dos diversos fenômenos e objetos naturais em determinadas categorias, a investigação interna dos corpos orgânicos segundo a sua diferente estrutura anatômica migraram, com Francis Bacon e John Locke, para a filosofia.

Com raras exceções, deslocadas do eixo principal da corrente filosófica predominante (O Sobrinho de Rameau, de Diderot; Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de Rousseau), a filosofia moderna, segundo Engels, inclusive os pensadores franceses do século XVIII, deixou-se contaminar pela “especulação metafísica”.

A restauração em uma forma superior, sintética, da dialética se beneficiou, no entanto, segundo Engels, do trajeto das ciências naturais. Contribuíram tanto o ritmo de seu desenvolvimento, caracterizado pelo acúmulo incessante de dados, como a consciência crescente (apesar da confusão que ainda viceja entre os cientistas) de que no método metafísico os fenômenos da natureza não são encarados dinamicamente, mas estaticamente, não são considerados como situações substancialmente variáveis, mas como dados fixos, de que são, em suma, dissecados como materiais mortos e não apreendidos como objetos vivos.

Transmutado em método “experimental”, “científico”, a dialética tal como compreendida por Engels considera a natureza como “pedra de toque”. O movimento que alça a observação da natureza à condição de objeto de estudo privilegiado para a compreensão da dialética materialista não sinaliza, porém, uma desqualificação dos outros domínios. Longe disso, a ênfase decorre, sem dúvida, da necessidade de firmar uma posição e um terreno ainda pouco assentados. Em Engels, a história humana e a atividade espiritual que lhe é conexa – objetos da maior parte de sua obra – são valorizadas também como campos férteis para o entendimento e a explicação das “leis” da dialética.

Entre maio de 1873 e maio de 1876, Engels dedicou-se à coleta e preparação do material da pesquisa, trabalhado preliminarmente sob a forma de anotações e fragmentos. Datam desse período a maior parte dos 169 textos curtos agrupados no volume póstumo publicado apenas em 1925 na União Soviética – na versão original em alemão e numa tradução para o russo. Apenas um dos dez artigos que vieram a compor o livro foi redigido nesta época, o ensaio denominado “Introdução”.

A redação de Dialética da natureza foi interrompida quando Engels aceitou o convite de Guilherme Liebknecht, editor do jornal do Partido socialdemocrata alemão (SPD), para refutar cientifica e politicamente as ideias de Eugen Dühring, um professor de filosofia autodeclarado socialista que estava conquistando adeptos no seio do partido e fascinando até mesmo fieis seguidores de Marx. Embora considerasse desprovidas de interesse as posições de Düring – um socialismo derivado de Proudhon, uma economia política baseada em Carey e uma filosofia positivista e antidialética –, Engels aproveitou a oportunidade para expor para um público amplo, sob a forma de controvérsia, a teoria desenvolvida por ele e por Marx.

Certamente o fator que mais pesou nessa decisão foi a aprovação do programa de fundação do SPD no Congresso de Gotha, em agosto de 1875. O SPD resultou da unificação dos dois principais partidos socialistas, o Partido Operário Socialdemocrata da Alemanha, comandado por August Bebel e Guilherme Liebknecht – dois ativistas muito próximos de Marx e Engels – e a Associação Geral dos Operários Alemães, comandada por Ferdinand Lassalle. Tanto Marx como Engels reclamaram indignados, em cartas aos seus seguidores, da supressão no Programa de Gotha de pontos decisivos do materialismo histórico e das concessões, segundo eles, exageradas, às posições de Lassalle.

Após se familiarizar com a obra de Eugen Dühring, Engels optou por realizar uma crítica imanente do Curso de filosofia, livro editado em cinco volumes. Na leitura de Engels, Dühring apresentara sua doutrina socialista como a última consequência prática de um “novo, amargo e enorme” sistema filosófico. Engels anteviu na crítica pontual a Dühring a oportunidade tanto de se posicionar perante tópicos controvertidos da época, questões atuais de interesse científico e prático, como de promover uma expansão das fronteiras do materialismo histórico.

Nesse esforço de complementação e ampliação das configurações delimitadas até então pelo conjunto de textos publicados por ele e por Marx – no qual se destacavam O Manifesto Comunista e O capital –, Engels seguiu, em certa medida, as tendências predominantes no ambiente intelectual da época, marcado duplamente pelos avanços da ciência e pelo anseio cientificista de ordená-los de forma enciclopédica. Ao longo do Anti-Dühring o materialismo histórico se apresenta assim como um sistema, como uma espécie de teoria unitária do homem e da natureza.

Os artigos sobre Dühring foram publicados no jornal Vorwärts entre janeiro de 1877 e julho de 1878. Logo em seguida saíram em livro, pela editora Dietz. O volume organiza os textos em três partes denominadas “Filosofia”, “Economia política” e “Socialismo”. Na primeira, a mais alentada delas, Engels recorreu intensamente ao material e aos estudos de sua programada Dialética da natureza, uma vez que o pensamento filosófico de Dühring priorizava a ontologia e a filosofia da natureza.

O impacto do Anti-Düring sobre o projeto da Dialética da natureza foi ambivalente. Por um lado, Engels pôde se considerar satisfeito pela oportunidade de expor, antes mesmo de desenvolvimentos completos, os resultados de seus estudos sobre a dialética, a filosofia da natureza e as descobertas recentes das ciências naturais. Ainda mais, quando se leva em conta o sucesso de público e de estima do Anti-Dühring. A versão condensada deste livro – privilegiando a exposição positiva e destituída do formato de polêmica –, intitulada Do socialismo utópico ao socialismo científico, obteve um sucesso inaudito. O livreto, cujo carro chefe consistia na exposição das leis da dialética, foi publicado na Suiça em 1882 e traduzido em seguida para mais de uma dezena de línguas. Tornou-se rapidamente, junto com o Manifesto Comunista, uma das duas mais difundidas apresentações do materialismo histórico, responsável pela formação de toda uma geração de marxistas.

Por outro lado, a recepção favorável e interessada de sua crítica da filosofia de Dühring incentivou Engels a prosseguir na execução dos trabalhos referentes à Dialética da natureza. Tendo em vista que muitos conteúdos já haviam vindo a lume ao longo do Anti-Dühring, Engels formulou, em chave mais restrita, em 1880, uma segunda versão do esboço geral do livro. Na retomada das investigações, iniciada no segundo semestre de 1878, redigiu nove dos dez artigos “completos” que compõem o volume póstumo.

Em 1883, o trabalho foi interrompido. Após a morte de Marx, ocorrida em março deste ano, Engels reorganizou suas tarefas, seguindo uma avaliação que não considerou prioritária a conclusão da Dialética da natureza e tampouco a publicação parcial do material já redigido. Ele deliberou que doravante iria se dedicar preferencialmente a três ocupações: (a) organizar para publicação os manuscritos deixados por Marx relativos aos livros II e III de O capital; (b) acompanhar, e quando possível conduzir, a luta internacional da classe trabalhadora, em ascensão com a estruturação em andamento de partidos de massas; (c) divulgar e disseminar o materialismo histórico por meio de novas edições e traduções das obras de Marx, para as quais redigiu importantes introduções.

No decorrer da Dialética da natureza, Engels aborda, em vários momentos, a questão da relação entre a sua teoria e a filosofia hegeliana. Quando acusa o pensamento de Hegel de idealismo e de espírito sistemático, por exemplo, não deixa de apontar para as dificuldades inerentes às tentativas de transplante dessa obra e do seu método por parte de um saber que se afirma, já desde o nome, “materialista”. O resgate da dialética hegeliana depende, portanto, de sua conversão de procedimento próprio ao idealismo em método do materialismo.

Engels considera que o movimento, segundo ele revolucionário, de “supressão da filosofia” é suficiente para desencadear e completar essa transposição, em alguma medida facilitada pelo caráter antidogmático do método de Hegel. Engels compreende como “fim da filosofia” – tendência apontada pelo próprio Hegel – “a saída do labirinto de sistemas para o conhecimento positivo e real do mundo”. Apoiando-se na dissociação, desvelada pelo debate alemão nas décadas de 1830 e 1840, entre método e sistema no pensamento de Hegel, julga factível destruir criticamente a forma, conservando, porém, o conteúdo da filosofia hegeliana, incorporando assim não apenas a dialética, mas também a riqueza enciclopédica do sistema.

A tarefa de compatibilizar sistema e método dentro de uma perspectiva materialista torna-se assim uma incumbência das disciplinas específicas voltadas para a compreensão da natureza e da história. A condição para essa junção de cientificidade e dialética ou, no vocabulário de Engels, para a transformação das ciências metafísicas em ciências dialéticas – ausente tanto no materialismo francês do século XVIII quanto na filosofia da natureza alemã – foi o desenvolvimento, no decorrer do século XIX, de uma concepção histórica da natureza.

A capacidade de pensar a natureza como um processo, atestada pelo exemplo de ciências de ponta, então recém-fundadas, como a fisiologia, a embriologia e a geologia, por si só, indicaria a pertinência de um programa que visasse ressaltar o peso ou até mesmo a preponderância da dialética na constituição de uma perspectiva materialista acerca da natureza.

Posto isso, o método dialético torna-se decisivo para a compreensão e fixação das “leis” gerais do movimento, base primeira de um esclarecimento do teor objetivamente dialético da natureza. Para demonstrar a veracidade e a universalidade de tais “leis”, Engels, dado o caráter indutivo-dedutivo do seu empreendimento, optou pela via de um acompanhamento exaustivo, isto é, pelo procedimento quase infindável de decifração caso a caso das mais importantes descobertas da ciência de seu tempo.

Engels também apresenta a dialética como essencial na tarefa de ordenar o caos das novas descobertas científicas, que se sucedem atropeladamente. O esforço para estabelecer uma concatenação entre descobertas contingentes, pois exclusivamente empíricas, além de evidenciar o caráter dialético dos fenômenos particulares, insere-se – ao fortalecer a dissolução da rigidez das linhas nítidas de demarcação que contribuíram para conceder às ciências naturais “o seu acanhado caráter metafísico” – em um projeto maior de substituição das ciências colecionadoras (“ciências de objetos acabados”) pelas ciências coordenadoras (“ciências que estudam os processos, a origem e o desenvolvimento das coisas”).

Tal avanço, dado pela possibilidade de um estudo sistemático das modificações da natureza, não esgota, entretanto, segundo Engels, o estoque das consequências a serem extraídas desse encadeamento dos fatos científicos. A síntese dialética permite ainda, eis o decisivo, a articulação de um “sistema da natureza”. Não se trata de uma retomada do sistema universal e compacto no qual Hegel pretendia enquadrar as ciências da natureza e da história, plasmado de acordo com o postulado idealista de “soluções definitivas” e “verdades eternas”. Trata-se, porém, de um encadeamento que, apesar de aberto, não deixa de fornecer uma visão de conjunto semelhante àquela anteriormente a cargo da filosofia da natureza. A concatenação dialética resgata, por meio de uma articulação interna, a visão conjunta dos processos naturais como um grande todo.

A recepção da Dialética da natureza merece um capítulo à parte. Trechos esparsos e algumas das teses do livro foram incorporadas como parte da ideologia oficial do Estado soviético e em certa medida da teoria – denominada marxismo-leninismo – abraçada pela maioria dos partidos da Terceira Internacional.

Em reação a isso, muitos autores do assim chamado “marxismo ocidental”, principalmente após 1945, dedicarem-se à refutação da dialética engelsiana. Nessa série cabe destacar os artigos “Marxismo e Filosofia”, de Maurice Merleau-Ponty (em Sens et non-sens) e “Matérialisme et Révolution” [Materialismo e Revolução], de Jean-Paul Sartre (em Situations, III), bem como os livros O marxismo soviético, de Herbert Marcuse; Critica da razão dialética, de Sartre e Der Begriff de Natur in der Lehre von Marx, [O conceito de natureza na doutrina de Marx], de Alfred Schmidt.

Independentemente de juízos de valor e de posicionamentos no interior das linhagens do marxismo, o acompanhamento da controvérsia exige e recomenda a leitura atenta de Dialética da natureza.

*Ricardo Musse é professor do departamento de sociologia da USP. Autor de Émile Durkheim: Fato social e divisão do trabalho (Ática).

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