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Fernando Nogueira da Costa

Professor Titular do IE-UNICAMP

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Dinheiro em Transformação

O novo regime em gestação pode ser descrito como financeirização algorítmica multipolar

Notas de dólar (Foto: REUTERS/Jose Luis Gonzalez/Illustration/File Photo)

Uma leitura histórico-sistêmica do dinheiro como forma social em transformação, observa cada regime monetário expressar um tipo de relação de poder e um fundamento distinto de confiança. Devemos entender a história monetária em forma de transições históricas concatenadas, desde a gênese do dinheiro como dívida até o atual estágio digital com a crise do padrão-dólar.

O primeiro regime monetário nasceu sem moeda física, em um contexto de economias redistributivas e teocráticas. Nos templos e palácios da Mesopotâmia (por volta de 3000 a.C.), os bens eram armazenados e contabilizados segundo unidades de medida fixadas por autoridade central, em termos de cevada ou prata.

A moeda, nesse contexto, não era uma “mercadoria de troca”, mas uma unidade de conta, usada para registrar créditos e débitos dentro da comunidade e para calcular tributos devidos ao soberano ou ao templo. O dinheiro era escritural, componente de um sistema de contabilidade da dívida social, mediado por poder político e religioso.

Essa estrutura de poder, sob templos, palácios e autoridades sacerdotais, controlava a emissão simbólica de valor. A forma de confiança era dada pela fé na ordem divina e no poder coercitivo do Estado, porque a obrigação tributária era garantida pela religião reforçada pela lei. A “moeda” era um signo de relação social hierárquica – e não apenas de equivalência mercantil.

Com a expansão das cidades-estados e dos impérios (Lídia, Pérsia, Grécia, Roma, China imperial), o dinheiro assumiu a forma física e portátil do metal cunhado.
Mas essa transformação não foi apenas técnica, pois refletiu a necessidade do Estado de financiar exércitos, cobrar tributos e unificar mercados sob seu domínio.

O valor do dinheiro não residia no metal em si, mas no selo de autoridade capaz de o validar. A cunhagem padronizada permitia arrecadar impostos e pagar soldados. Os cidadãos, por sua vez, só podiam liquidar seus tributos com a moeda emitida pelo soberano. Assim se formava um circuito monetário estatal.

A estrutura de poder estava constituída por monarquias e impérios centralizados. O Estado definia o valor nominal da moeda e controlava a cunhagem.
A forma de confiança estava sob a fé no poder político e militar do emissor — o “nomisma” (de nomos, lei). A numismática tem origem no termo grego nomisma (moeda), transformado em numisma em latim.

O ouro e a prata tornaram-se reservas de valor transnacionais porque condensavam mobilidade e raridade, mas o poder de curso derivava da soberania política. O metal, portanto, foi um veículo da confiança estatal, não sua origem.

O dinheiro bancário surgiu na Era Moderna, com uma “financeirização” prévia ao capitalismo industrial. A revolução financeira na Holanda do século XVII ocorreu um século antes da revolução industrial na Inglaterra do século XVIII. 

Com o florescimento do comércio europeu, nos séculos XIII–XVII, as trocas ultrapassaram os limites físicos das moedas metálicas. Surgiram as letras de câmbio, os depósitos bancários e as notas conversíveis em metal, criando o dinheiro bancário, essencialmente, crédito privado lastreado em confiança social.

Essa etapa deslocou o centro de poder. O Estado ainda definia a moeda legal, mas os bancos privados passaram a criar dinheiro via crédito e escrituração. A moeda tornou-se uma promessa de pagamento, não mais um objeto de valor intrínseco.

O século XIX consolidou o padrão-ouro internacional, um regime híbrido no qual o ouro garantia a credibilidade do sistema, mas a criação monetária era comandada por bancos comerciais, nem todos sob um Banco Central. O Estado passou a sustentar a confiança por sua estabilidade institucional e solvência fiscal, enquanto o ouro servia como âncora simbólica.

A estrutura de poder encontrava-se no Estado-nação e no sistema bancário entrelaçados, inclusive pela progressiva fundação de Bancos Centrais. A forma de confiança se dava pela racionalidade legal e contábil, convertibilidade metálica e crédito soberano.

Esse regime correspondeu à formação do capitalismo industrial e colonizador. O dinheiro se tornou um meio de expansão global do capital produtivo e comercial.

O dinheiro fiduciário se configurou como uma criatura do século XX, quando se evoluiu do padrão-ouro ao padrão-dólar. As guerras mundiais, entremeadas pela crise de 1929, desestabilizaram a base metálica lastreadora das reservas.

Com Bretton Woods (1944), os EUA impuseram o padrão-dólar-ouro, no qual o dólar seria conversível em ouro por opção dos bancos centrais estrangeiros. As demais moedas se ancoraram no dólar.

A partir de 1971, com o fim da conversibilidade (Nixon Shock), o sistema torna-se puramente fiduciário – e o regime de câmbio flexível ou volátil. O valor flutuante de cada moeda nacional passa a depender exclusivamente da confiança na autoridade emissora e da estabilidade macroeconômica.

A estrutura de poder se dá pela hegemonia do Estado emissor da moeda de reserva — os EUA — e dominação financeira global via sistema dólar-Wall Street-FMI. A forma de confiança é pelo poder político-militar dos EUA e a crença na sua capacidade de honrar toda sua dívida pública em dólar.

A moeda fiduciária moderna é poder soberano codificado em balanços, cuja circulação é mediada por bancos centrais e mercados cambiais. Essa arquitetura produz o chamado de império financeiro do dólar, sustentado pela confiança coercitiva na dívida pública americana.

Entretanto, vivenciamos, agora no século XXI, a transição para o dinheiro digital ou a dita financeirização algorítmica. A crise de 2008 expôs o limite da confiança nos intermediários financeiros americanos sob regulação do Federal Reserve (Banco Central dos Estados Unidos).

Surgiu o dinheiro digital descentralizado com o Bitcoin, em 2009, como uma reação anarco-libertária e tecnológica diante o poder bancário e estatal. Pela primeira vez, a confiança foi transposta do Estado para o código — “In code we trust”.

Entretanto, as criptomoedas puras são ativos especulativos, não moedas de curso estável. O sistema evolui então para as stablecoins, lastreadas em moedas soberanas ou ativos financeiros.

Um exemplo é o Tether (USDT), uma criptomoeda hospedada nas blockchains Ethereum e Bitcoin e com tokens emitidos pela empresa de Hong Kong Tether Limited, por sua vez, controlada pelos proprietários da Bitfinex. Disputam hegemonia diante as Moedas Digitais de Banco Central (CBDCs), como o RMB digital da China. O DREX do Banco Central do Brasil já era...

A estrutura de poder se dá pelas redes híbridas entre Estados, corporações tecnológicas e instituições financeiras globais. A forma de confiança é descentralizada (algoritmo) ou recentralizada (autoridade digital do Estado), baseada em reputação tecnológica, rastreabilidade e controle de dados.

A fase atual, na história monetária, representa a mutação da soberania monetária. O poder de emitir moeda se desloca para infraestruturas digitais e plataformas globais, redefinindo a relação entre crédito, dívida e território.

Portanto, temos a oportunidade de presenciar a transição contemporânea do padrão-dólar à arquitetura cripto-financeira. O sistema monetário internacional vive hoje uma tensão entre dois polos: de um lado, o dólar como eixo do sistema financeiro global, respaldado por poder militar e jurídico dos EUA; de outro, as moedas digitais soberanas (como o RMB digital) e as stablecoins privadas. Ambas criam circuitos paralelos de liquidação, comércio e reserva.

O novo regime em gestação pode ser descrito como financeirização algorítmica multipolar. O dinheiro se torna um fluxo de dados. O crédito é administrado por redes inteligentes (blockchains, fintechs, bancos centrais digitais). A confiança é reconstituída em termos tecnos e políticos, pela governança de sistemas e pela rastreabilidade.

A estrutura de poder se torna multipolar e em disputa entre Estados, Big Techs e consórcios financeiros. A forma de confiança é híbrida, vacilante entre a fé nos códigos e a legitimidade política das autoridades monetárias.

O dólar não desaparece, mas perde sua centralidade simbólica porque o valor se desloca do metal e do papel para o registro digital de ativos e para o controle informacional do crédito. Isto ocorre sob o conflito de interesses do Imperador Donald Trump! Estimula a transição para as criptomoedas para seu maior enriquecimento!

Síntese das Transições

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Os fluxos de poder e confiança foram de templos aos Estados, daí aos bancos até chegar aos algoritmos. Estes, supostamente, garantiriam a segurança, a integridade e o funcionamento descentralizado de toda a tecnologia blockchain.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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