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Tiago Basílio Donoso

Mestre em Teoria Literária pela Unicamp e autor do livro no prelo “Terras Nacionais e Terras Estrangeiras”, pela editora Kotter

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Direita e extrema-direita: diferenças na velocidade do trauma

"A fascinação exercida por todo trauma pode ser atestada pelo quanto de tempo gastamos pensando sobre os atos de violência exercida - claro, em grande medida justificado, como autodefesa - e a audiência que damos a monstros"

Artistas,sociedade civil e parlamentares durante manifestação na comissão censura nunca mais (Foto: Gustavo Bezerra - Agência PT)
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É tudo sobre a velocidade do trauma. A diferença entre extrema-direita e direita (direita, centro, terceira via, um só animal com três cabeças) se dá na decisão de quão rápido se provocará o trauma.

O status quo havia optado pelo trauma lento, medido, paulatinamente estratégico. Nos tempos recentes, Geraldo Alckmin era o tipo perfeito, de cujos movimentos emana certa lentidão pensada - o que, aliás, nunca impediu o uso da força bruta e súbita contra estudantes, professores, movimentos sociais, sindicais e, principalmente, contra as periferias rurais e urbanas do país.

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Essa violência lenta e determinada foi preponderante enquanto foi útil. O neoliberalismo, contudo, ao passar de quatro décadas operou a mudança no tempo da violência (um de seus mecanismos, que unia economia bruta e pauta de costumes, foi o topos da guerra às drogas, que muito lhe ensinou na arte da opressão). A extrema-direita é a idade adulta do centro, é seu amadurecimento. Nos espantamos hoje com que facilidade o terno se converte em farda, e justamente esse espanto é a prova de que a lentidão com que fomos traumatizados funcionou e, quando o notamos, já estamos internamente machucados (quando não de modo óbvio e externo), e sentimos dor ao tentarmos entender o mundo;  a dor ao ver alguém próximo convertido ao bolsonarismo é uma dor traumática, o sentimento da repetição do terrível sem explicação e horizonte de purgação (é típico do trauma que explicações, conquanto racionais e coerentes, não amenizem a dor, cujo aguilhão está no passado).

A fascinação exercida por todo trauma pode ser atestada pelo quanto de tempo gastamos pensando sobre os atos de violência exercida - claro, em grande medida justificado, como autodefesa - e a audiência que damos a monstros. Mas, voltando ao ponto, o pensamento que está na boca da realidade agora é: como é possível causar, não traumaticamente, o trauma?

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Como causar não traumaticamente o trauma é a questão da direita e da extrema-direita. A resposta é o que os diferencia. A tradicional: lentamente, aos poucos, como remédios amargos a que se habitua o corpo social. Tira-se um direito aqui, aceita-se a mise-en-cène das instituições funcionando, emula-se a ampla defesa, convence-se aos poucos da importância das privatizações, promove-se um programa midiático com herois individualizados, exalta-se todos os dias a meritocracia.

Porém, os tempos são outros e os remédios lentos funcionam menos do que antes. Aliás, lucro não se reduz; antes o contrário, sempre se espera por mais, como no vício. E a resposta à pergunta “como causar não traumaticamente o trauma” é respondida por: “de uma vez, rapidamente, como um mergulho desorientador em água fria ou uma injeção”.

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O tempo lento da formação da opinião pública dá lugar a uma avalanche diária de informação maligna, a informação acelerada (não pelo tempo digital, como imaginaríamos, mas pelo tempo do cacetete, do golpe que é mais forte quanto mais veloz, e que o mundo digital apenas copia). Acentua-se a violência física, a violência simbólica. É o tempo do blitzkrieg. Enquanto tentamos entender como fomos atingidos por um lado, sofremos o trauma concomitante de outro. O tempo dos produtos culturais é mais rápido porque o capitalismo assim o demanda.Não se trata, contudo, de centro-terceira-via contra extrema-direita, mas de uma metamorfose do poder econômico. Se antes o poder econômico se satisfazia com a violência lenta dos grandes animais, dos kaijus bancários e multinacionais, agora para se ampliar a dose da expropriação o tempo deve ser o dos herois e vilões Marvel, o tempo dos animais predadores, os saltos, os botes, as tocaias; as cenas cinematográficas que duravam um minuto sem cortes agora não duram três segundos, os vídeos tiveram seus tamanhos reduzidos, fazendo força para reduzirem juntos a atenção, sendo a atenção ela própria a casca que nos defende do golpe inesperado.

A direita não tem escolha a médio prazo senão, de um lado, abandonar sua ânsia pessoal por lucro e privilégio para então abraçar uma ideia de mundo melhor, aquela que suas teorias econômicas apenas emulavam (e tornar-se em certa medida progressista, como Reinaldo Azevedo - o que é altamente improvável); ou realizar, aceitar a mudança do capitalismo de fora para dentro, e fazer a licantropia cuja quimera (o monstro perfeito do capitalismo) conhecemos na campanha de 2018: Bolsodória. Diversos políticos de centrão já aceitaram o caminho, que é o caminho fascista. Nos Estados Unidos, o Partido Republicano já é o Partido Trumpista, e é possível ver como o poder econômico migrou descaradamente para um ainda prototípico partido nazista.

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Foi o capitalismo de desastre, aquele descrito por Naomi Klein, quem deu a linha a ser seguida pelos donos do capital: rápido, de uma vez, aproveitando crises, criando crises, sem dar tempo para a reflexão. Agora eles têm o mundo veloz e apocalíptico com que sonharam. De seu horizonte pragmático já desapareceu há muito uma ideia de bem comum.

Bolsonaro é o Dória em anfetaminas, agindo como se não houvesse mais tempo para nada. E, em realidade, de fato não há tempo: é preciso por isso desacelerar, parar, e não correr. O horizonte de escolhas a que estão tentando reduzir a democracia, entre polarização e terceira via, é: se não se comportarem, continuaremos com a dose diária de más injeções; mas a salvação é o retorno aos óleos de rícino, ao merthiolate, ao lento sadismo dos remédios antigos. Crêem que preservam assim os seus escrúpulos. Quando virem, porém, que a saída é a verdadeira democracia, o progressismo eleito, então dirão mais uma vez, como já começam a dizer: “às favas os escrúpulos de consciência”. O Bolsonarismo é o retorno ao passado na medida que seu horizonte é o trauma, a repetição, a “cura” da nação pelo mercúrio do garimpo; é o presente, por outro lado, como encarnação de um capitalismo de desastre, cuja violência é constante, acelerada como nunca e inescrupulosa.

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O poder econômico no Brasil só não abraçou completamente o bolsonarismo porque ainda acha que o modelo antigo, lento e já justificado pelas teorias econômicas e pela historiografia e sociologia oficiais, é mais eficaz; que Dória no poder resultaria em maior e melhor expropriação. As elites acreditam que os termos “austeridade”, “modernização”, “investimento”, “desinvestimento”, ainda são suficientes. Que basta modificar certos nomes aqui e ali, chamar de “desestatização” a privatização, para levar a cabo seu projeto em benefício próprio. O voto na pauta da urna manual e a pulverização do PSDB, partido dos neologismos instrumentais como nos mostrava José Simão, são provas de que tal decisão não é unânime.

Enfim, para terminar com uma sugestão, além dessa tentativa de se compreender o que ocorre por um ângulo diferente, sigo mais uma vez a proposta de Naomi Klein, dessa vez em livro mais recente, “Não basta dizer não”. Como devemos lutar? A autora nos faz ver que todas as frentes de luta são bem vindas. Se, por vezes, os movimentos específicos se confundem com a política neoliberal de pautas identitárias, isso não deve nos preocupar: quando lutamos, por vezes lutamos bem, por vezes lutamos errado - e isso não deslegitima a luta. Se cometemos algum erro, aprendemos e seguimos lutando. Contra a lógica do trauma, uma absoluta fertilidade de lutas que não nos dividem, antes nos unem: contra todas as opressões, de classe, de gênero, de etnia, de credo, de razões econômicas e ecológicas, a ideia de união anticapitalista e, por conseguinte, humana.

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Vamos seguir lutando, sempre pensando na ideia de coletividade organizada, lutando contra a individualização meritocrática e a separação das pessoas em ilhas. Lutamos, o que significa que vamos errar. Ao contrário do trauma, com seu tempo repetitivo dos filmes de terror e dos mitos, o aprendizado tem outra lógica: errando, acertando, sua alegria no seio do comum se dá não pelo reconhecimento de algo que já ocorreu, mas de um bom futuro, ainda somente imaginado. Se o tempo do trauma é o da dor passada (bolsonaristas batalhadores dizem que crianças devem trabalhar, porque alguns deles trabalharam e sofreram desde os dez anos de idade); se o tempo do trauma é o do abuso, do que aconteceu e por haver acontecido deseja se repetir e substituir o tempo por sua roda própria, o tempo do aprendizado se justifica em algo que ainda não ocorreu, como uma espécie de terra prometida, e que guia nossos passos. Se ainda nos arrepiamos nas manifestações e nos dá uma alegre e quase incontida vontade de chorar ao sentirmos que somos o povo, então o trauma não é nada;  por mais terríveis que sejam os desafios, não podemos perder essa íntima sensação de que talvez estejamos no trigésimo nono ano de nossa caminhada no deserto.

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