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Sérgio Cardoso

É professor do Departamento de filosofia da USP

2 artigos

blog

Direita liberal, esquerda e bolsonarismo

"O governo existe e se mantém por conta de duas forças de sustentação: o estamento militar e o Mercado", escreve o professor de Filosofia da USP Sérgio Cardoso sobre o governo de Jair Bolsonaro

O capitão fascista quer o Brasil em guerra (Foto: REUTERS/Ricardo Moraes)
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Por Sérgio Cardoso

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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Bolsonaro e o fascismo

Estamos, na política brasileira, mergulhados em um poço de simulacros. Nem o fascismo de superfície instalado no governo, que tanto nos indigna, tem consistência real. Já tivemos, com o Integralismo, um protofascismo verdadeiro. Hoje, uma espécie de embrião exótico dele se repete, caricato, como tragicomédia. Não que seja algo oco ou inócuo; é fake, um fakefascismo, com a virulência das fakenews. Os fascismos reais envolvem crenças e convicções, ‘verdades’ e evidências (frequentemente alucinatórias); aqui há escárnio, oportunismo e cinismo.

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É certo que vemos de volta o vocabulário de base do fascismo: Deus, Pátria, Família, etc. No entanto, o Deus dos bolsonaristas é aquele dos espetáculos pífios de alguns pastores rudes, muitos endinheirados, vários corruptos, alguns criminosos. Sua pátria não é aquela da mística de uma identidade nacional, nem a da reverência às origens ou a instituições fundadoras; enfim, a dos verdadeiros nacionalismos.

Aqui, fala a pátria de soldados rasos e oficiais autoritários e corporativos – frequentemente golpistas –, que não hesita em se subordinar ao Mercado neoliberal sem pátria e também, de maneira subserviente e vexatória, àquele showman vulgar alçado ao comando do Império. Do mesmo modo, seu apego à família nada tem a ver com a velha devoção conservadora – frequentemente hipócrita – à família cristã; é a defesa mafiosa de familiares. Tudo aí é caricatura, simulacro.

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Bolsonaro e seus seguidores mais fanatizados não devem, portanto, ser temidos e enfrentados como se representassem o avanço de um verdadeiro fascismo, ideológico e militante. Seus 300 são menos que 30; suas milícias, tampouco as digitais, não são propriamente políticas; seus ideólogos são risíveis; seus rompantes antiimprensa não intimidam qualquer jornalista.

Enfim, sua força política não vem de um ideário consistente, nem de uma organização militante (ele sequer consegue ter partido); ela vem de medos e ódios alimentados por pastores patéticos, milicianos, políticos oportunistas e  pela contínua encenação mambembe – por tweets e pequenos sketches de rua para seus fiéis ou por palavrões para os aúlicos no palácio – de ameaças a imaginários inimigos do país e opositores ao seu governo, sejam os externos (o globalismo comunista, a ameaça chinesa, M. e Me. Macron, os defensores das florestas), sejam os internos (o Supremo, as Ongs, os petistas corruptos, os ‘maricas’ alarmados com a gripezinha da Covid).

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Mas, onde está a realidade do governo Bolsonaro? Que forças realmente o inflam e sustentam? Evidentemente não são aquelas dos ‘aliados’ parlamentares, coadjuvantes da farsa, o ‘centrão’ fisiológico e sempre governista. Esse governo existe e se mantém como é arquisabido por duas forças de sustentação. De um lado, o estamento militar, que o vertebra em toda sua extensão (mais de 6.000 militares em postos-chave). Pois, os militares, com ele, voltaram ao centro do poder, com seu tosco anticomunismo, seu nacionalismo envelhecido e esvaziado, seus interesses corporativos.

De outro lado, o Mercado, em buscado desmonte dos direitos trabalhistas, da privatização de bens públicos, da neutralização das esquerdas. O Mercado precisa das encenações do presidente para obter cobertura ‘popular’ e eleitoral para seu próprio jogo e suas manipulações econômicas. E Bolsonaro lhe tem dado, além da cobertura eleitoral, maiorias parlamentares para as ‘reformas’ e até mesmo pretextos para alguns, parcos, protestos de civilidade social e de pudor político. Os representantes do Mercado mantêm em geral um silêncio constrangedor sobre as barbaridades do presidente; vez ou outra ensaiam entreveros, logo contornados, entretanto, pelo bom senso e a necessidade de garantir a estabilidade e o programa das ‘ necessárias reformas’ (na falta das quais se anuncia o apocalipse).

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Os militares não precisam dar razões para sua maciça presença no governo, senão seu patriotismo, o evidente amor pelo país e a preocupação com seu destino. Já os liberais se veem pressionados a produzir alegações de ordem política. Quais seriam, portanto, suas motivações ideológico-políticas e mesmo a lógica subjacente à sua aliança tática com os bolsonaristas?

Os liberais e Bolsonaro

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Comecemos pelas afinidades eletivas ‘ideológicas’ que os aproxima. Em primeiro lugar, há a alegada oposição lavajatista de ambos à “velha política”, oligárquica e corrupta (e mais acentuadamente ainda corrompida pelas administrações petistas). Há, em seguida, sua aversão comum ao ‘intervencionismo’ e ‘dirigismo’ do Estado, no ver dos liberais, inchado e ineficiente, caro e paternalista (gastos sociais excessivos com a seguridade, com o financiamento desnecessário do ensino universitário, do SUS, etc) – a ser corrigido pelas privatizações, pela racionalização da administração, pelo incentivo a uma sociabilidade mais empreendedora e ‘competitiva’. Depois, aproximam-se ainda por seu combate comum às “ideologias radicais da esquerda” (em todos os seus matizes: os Castro, os Chaves, os Evo, os Lula) – ideologias ateias e internacionalistas para os bolsominions; indutoras de polarizações e ódios, inimigas do pluralismo e da democracia, para seus aliados.

Mas, busquemos as razões propriamente políticas. Em primeiro lugar, eles alegam que o governo Bolsonaro foi eleitoralmente instituído por meio bons procedimentos democráticos (aqui, democracia é tão somente agregação de interesses e opiniões expressas pelo voto). E sua eleição realizou uma necessária e legítima alternância no poder, impedindo que o petismo aí se cristalizasse. O atual presidente, ademais, “soube captar o movimento de rejeição da esquerda” e “soube incorporar tendências relevantes da vida política brasileira” (o conservadorismo dos costumes; a animosidade em relação aos políticos e ao sistema político; a indignação com a corrupção e a justa demanda por ética na política; o novo uso intensivo das redes sociais).

Do ponto de vista dos procedimentos da democracia, portanto, nada a censurar: não se pode contestar sua legitimidade e sua legalidade (ao contrário do que ocorreu com a escandalosa manipulação das contas públicas no governo Dilma). Dele, podem ser deploradas palavras e ‘rompantes’, mas não atitudes e atos antidemocráticos (Cf. ministro Dias Toffloli). Assim, o sensato é oferecer apoio, crítico e destacado, para preservar a lei e a ordem e para as necessárias medidas de saneamento e liberalização da economia.

Depois, fazem questão de lembrar também que a polarização política atual, que dá espaço para tantas barbaridades e sandices, foi provocada pela própria esquerda, com sua ‘retórica violenta’, seu velho jogo de estigmatização dos adversários (lembram aqui, com certa mágoa, o “fora FHC”, um governo socialdemocrata);enfim, sua visão binária e adversarial da política. No final das contas, o autoritarismo da esquerda e da direita bolsonarista se assemelham por seus efeitos deletérios sobre nossa vida democrática.

Mas, considerada sua fragilidade político-institucional, seu vazio ideológico, seu ridículo cultural, o tosco populismo de Bolsonaro talvez represente um perigo menor que aquele da esquerda e poderá, quiça, servir de antídoto para a forte virulência cultural e ideológica desta última. Quem sabe o choque desses extremismos desperte o país para a sadia racionalidade política, dialógica e pluralista. A bolha bolsonarista também se desmanchará uma hora ou outra, deixando prevalecer a razão democrática liberal, à distância dos radicalismos.

São lamentáveis, admitem, coisas como o desmanche da Casa de Rui Barbosa, da Funarte, da Cinemateca, o estrangulamento dos financiamentos para a educação pública e para a produção de ciência, o obscurantismo, a cultura da violência e de desrespeito às minorias, a apologia da tortura, etc, etc, etc. Porém, se se controlar o déficit público, se se soltarem os freios – representados sobretudo por nossa atrasada legislação trabalhista – que seguram os investimentos, se se enxugar a máquina ineficiente da administração pública, enfim, se se recolocar a economia nos trilhos, aos poucos voltarão o necessário desenvolvimento e também as Luzes. Afinal, não se pode ter tudo de uma vez, em um país atrasado e com uma parcela significativa do povo tão sujeita à manipulação dos demagogos, por deseducada e incivilizada.

A esquerda, os liberais e Bolsonaro

Como, pois, não é difícil concluir, a oposição ao frágil e indigente bolsonarismo, paradoxalmente, está longe de ser uma tarefa política e eleitoralmente fácil (deixando de lado o fator militar), levando-se em conta, sobretudo, o apoio objetivo que lhe vem do Mercado, a força cultural alcançada entre nós pelo neoliberalismo e, ainda, as convicções dos liberais de boa consciência que compactuam com ele – mesmo que não o façam por vontade, mas por necessidade (e suplicando para que Bolsonaro não atravesse a linha tênue entre seu ‘populismo’ e uma autocracia, apoiada por seus militares).

Constata-se também o quanto é complicado para a esquerda buscar uma composição com grupos e partidos de centro-direita, para barrar os descalabros do bolsonarismo. E lembremos ainda que, além de seus motivos táticos e doutrinários, os nossos liberais projetam na esquerda (mesmo nos governos petistas, contra todas as evidências) a negação dos seus valores políticos mais fundamentais: a moderação; a tolerância à pluralidade de opiniões e de interesses; a proteção dos direitos invioláveis dos indivíduos, sobretudo o de propriedade (pois, estão certos de que ela sonha todos os dias com desapropriações e confiscos através de impostos).

Enfim, o ‘centro’ sempre resiste às alianças com as esquerdas e estas, por seu lado, têm boas razões para desconfiar de que toda frente ampla de oposição só se constituiria a partir das cartas postas na mesa pelos liberais e que terminaria por trazer mais água para o moinho do neoliberalismo.

É possível verificar, desse modo, que, no momento, parece restar à esquerda um único caminho: reconstruir-se, política e ideologicamente, no contra-campo demarcado pelo próprio bolsonarismo: por seu conservadorismo, seus preconceitos, seu desprezo pela ciência e a cultura, sua insensibilidade social, que assinalam bastante bem as balizas de demarcação de uma real oposição ao seu governo.

Trata-se, assim, de reconhecer plenamente a potência das lutas contra o obscurantismo e as opressões diversas, postas mais ainda em relevo pela brutalidade do governo: as reivindicações identitárias, ecológicas, de cidadania social, cultural e política (tarefa, é preciso lembrar, que não está imediatamente inscrita no DNA sindical, operário e socialista do PT, o maior e mais extraordinário trunfo progressista de nossa história política). Está em causa, enfim, a tarefa de recriar um campo substantivamente “popular”(uma empresa que seguramente será censurada como ‘populismo de esquerda’), sem o qual não haverá democracia verdadeira (o regime da afirmação e conquista permanente de novas leis e direitos).

Aqui, é preciso lembrar que Bolsonaro e os bolsonaristas são daqueles que veem o mundo como selva, a selva urbana de suas milícias, da esperteza e do tome sua arma e salve-se, e aos seus, se puder. Lembrar ainda que se ele horroriza os liberais é porque eles creem nas virtudes civilizadoras do comércio – do rei Mercado –, que domestica esse ‘homem lobo do homem’, dando-lhe árbitro e educando-o para as vantagens da troca, o sucedâneo da guerra.

Ora, a esquerda fala uma língua diferente e opera em um registro diferente. Enquanto a direita (seja a incivilizada ou a civilizada e ilustrada) opera sempre – economicamente – com a suposição da guerra de todos contra todos (mitigada apenas circunstancialmente por aglutinações de interesses),a esquerda, por seu lado, opera – politicamente – com a afirmação de valores e a busca do Direito e de direitos; opera não com a acomodação dos egoísmos (que existem), mas com universais políticos. Ela desdobra e labora no tempo seus princípios fundamentais: liberdade, igualdade, fraternidade – que continua, esta última, a ser reivindicada, mesmo depois que a Sra. Thatcher decretou que “não há sociedade; há [apenas] Mercado”.

A superação do desconcerto atual das esquerdas deve, então, certamente passar pela lucidez sobre a diferença, de base, entre esses dois campos políticos; mas, deve passar também pela compreensão de que o grande “Ele não” (que os liberais recusaram e recusam) que cresce no país está redesenhando e redefinindo o “campo popular”. Será necessário que se perceba que a rejeição a Bolsonaro não é um movimento apenas negativo e programaticamente vazio, mas que ele vocaliza a pulsão de liberdade e igualdade postas nas reivindicações dos múltiplos extratos socialmente oprimidos (os pobres, mas também as mulheres, negros, LGBT+, ambientalistas, etc), que a aversão a Bolsonaro – por suas boçalidades conservadoras, insensibilidade social e deboche – virtualmente unifica. Trata-se, então, de alcançar com esses grupos, para além da soma de suas demandas próprias, sua melhor expressão (propriamente) política. Há bons motivos para acreditar que é nessa articulação dos movimentos sociais contestatórios que ocorrerá a dinâmica da renovação e a reabertura, para a esquerda, do horizonte da política.

Vale aqui lembrar aqui, mais uma vez, o arguto Maquiavel: “… em todas as cidades se encontram dois humores distintos: o povo deseja não ser comandado nem oprimido pelos grandes e os grandes desejam comandar e oprimir o povo” (O Príncipe, cap. IX.). É da solução desta divisão social – originária da ordem social e política – entre ‘grandes e povo’, continua ele, que nascem ou regimes autocráticos (principados), ou regimes de liberdade (repúblicas) ou ainda uma anarquia licenciosa, a desordem (como a que vemos). Na pulsão de um desejo ‘popular’ – na negação comum das opressões, explorações e exclusões – é que se dá abertura da história …“o futuro”.

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