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André Norcia

Juiz de Direito. Foi escrivão e delegado da Polícia Civil. Também é escritor e assina a ficção “Delegado Rodrigo”

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Direito à primeira prova

"Proponho a inclusão do seguinte dispositivo ao Código de Processo Penal (DL 3.689/41)"

Direito à primeira prova

Proponho a inclusão do seguinte dispositivo ao Código de Processo Penal (DL 3.689/41):

Art. 304 – A 

“A autoridade policial competente informará o preso sobre o direito à imediata produção de prova, que será anexada ao auto de prisão em flagrante.

§1º O requerimento do investigado será reduzido a termo, respeitado o direito ao silêncio.

§2º A imediata produção de prova consiste em diligência efetuada pela polícia, ostensiva ou judiciária, com a finalidade de arrolar e colher testemunho, juntar aos autos áudio ou vídeo, constatar fato ou outro álibi que interesse à sua defesa.

§3º Diante da impossibilidade de produzir a prova requerida pelo investigado durante a lavratura do flagrante, a autoridade policial registrará os motivos no respectivo auto de prisão.

Art. 310 – A 

“Durante a audiência de custódia o juiz perguntará ao preso se foi informado sobre a imediata produção de prova.

§1º No caso do art. 304-A, § 3º, o juiz perguntará se o autuado ainda deseja requerer a produção de prova, antes da denúncia. Nesse caso, remeterá o termo à polícia judiciária para cumprimento, se possível.

Ingressei na Polícia Civil do Estado de São Paulo em 1991. Fui escrivão de Polícia por oito anos. Naquela época, as prisões em flagrante eram feitas em máquinas de escrever. Depois, em 2002, passei no concurso de delegado de polícia e exerci essa função por doze anos. Foram aproximadamente vinte anos integrando a instituição da Polícia Civil. É inimaginável o número de prisões em flagrante que elaborei e presidi. Aprovado na magistratura paulista em 2014, agora sou Juiz de Direito.

Convicto da necessidade de se acrescentar à ampla de defesa “o direito à imediata produção de prova”, quando da elaboração do auto de prisão em flagrante, elaborei o esboço do dispositivo acima descrito, e passo a explicá-lo de maneira suscinta e informal, na expectativa de que este artigo alcance o maior número de pessoas.

É natural e esperado que se alguém é preso (prisão de fato / detenção) por policiais, em regra militares, em situação que poderá ser considerada pela autoridade competente (delegado de polícia) como uma que se insere nas hipóteses de flagrante delito, esta pessoa é algemada e imediatamente encaminhada à delegacia de polícia da circunscrição do local do fato. O delegado de polícia comunica a pessoa sobre a sua prisão e passa a elaborar o respectivo auto e demais peças. Ouvem-se as testemunhas apresentadas, requisitam-se as perícias, expede-se os documentos necessários e todas as demais diligências que interessam ao caso. Essa solução decorre do Código de Processo Penal (art. 304, art. 6º, do CPP, etc). 

Significa dizer que o Estado, através da polícia judiciária, é quem decide sobre as provas que serão produzidas de imediato (utilizo o termo “prova” de maneira genérica, como a somatória dos atos praticados pelo delegado presidente do flagrante).

O art. 14, do CPP, estabelece que o indiciado pode requerer diligências. De ver-se, que essa norma é aplicada ao inquérito policial e, além disso, o dispositivo prevê que o requerimento pode ser indeferido. Esse tratamento durante a tramitação do inquérito não causa problema, pois o investigado pode valer-se de outras medidas legais para requerer (administrativamente/judicialmente) a diligência, antes que ela pereça. Poderíamos até concluir que algum requerimento do preso em flagrante deveria ser analisado pelo delegado presidente do feito, essa conclusão é possível (art. 14, do CPP) e, inclusive, decorreria também do art. 6, do CPP.

Mas a prática demonstra que não é assim. 

O preso, com a sua liberdade já suprimida, não possui um momento para requerer alguma diligência. As decisões são exclusivas do Estado.

A prática mostra que quando se trata de réu pobre, infelizmente, ele na maioria das vezes somente conversará com o defensor público no momento anterior à audiência de instrução e de julgamento. O mesmo Estado que decide sobre todos os atos da prisão em flagrante não possui estrutura para o acompanhamento efetivo do caso, pelo defensor do réu. Mesmo os advogados constituídos, muitas vezes somente tomam ciência do procedimento depois de dias. 

Quem milita na área criminal sabe que – pelo menos em regra – a espinha dorsal de todo o feito, da elaboração do primeiro documento pela polícia até o trânsito em julgado da sentença criminal, é constituída pelos atos produzidos no flagrante delito. É normal que seja assim, não há qualquer ilegalidade nessa constatação. Por outro lado, precisamos reconhecer que alguma testemunha crucial para o caso pode não ter sido arrolada a tempo, ou uma possível filmagem do local pode ter sido deletada se não requisitada logo de início (atualmente é comum que alguma câmera de segurança registre o fato).

Coleciono casos em que diligências fundamentais não foram feitas no momento do flagrante. Depois de meses, na audiência de instrução, não foi mais possível produzi-las. Apenas para ilustrar:

Caso 1: Em um processo de roubo de aparelho celular, a vítima resolveu, por impulso, tomar a atitude que os especialistas dizem não ser a melhor: abandonou o seu veículo na via pública, com o vidro quebrado e as portas abertas, e passou a perseguir os dois roubadores. Um quebrou o vidro, desferiu um soco na vítima, enquanto o outro dava cobertura. Eles correram, cada um para um lado. A vítima correu atrás de um deles por duas ou três quadras, até que o perdeu de vista, segundo as suas declarações, por pouco tempo. Ao virar à direita em uma rua, deparou-se com dois policiais militares abordando um indivíduo negro, de pouco mais de vinte e cinco anos. Ele não possuía qualquer registro policial anterior. A vítima o reconheceu imediatamente, “sem sombra de dúvida”, como um dos roubadores.

Em audiência de instrução, depois de seis meses de prisão provisória, o réu garantiu que estava em um prédio na mesma rua, no apartamento de um parente, pouco mais de trinta metros do local da abordagem. Disse que o seu parente poderia confirmar a sua versão, bem como o porteiro. Acrescentou que havia câmeras de segurança no local. O porteiro não foi mais encontrado e, como era de se esperar, as imagens não existiam mais. A acusação argumentou que o parente era suspeito para prestar testemunho.

Caso 2: Em um posto de gasolina, dois indivíduos roubaram um veículo que estava abastecendo. A vítima disse não ser possível reconhecer os autores, porque não pôde olhar com atenção. Depois de duas horas, policiais militares se depararam com o carro e deram ordem de parada. O motorista do veículo roubado e o passageiro ao seu lado fugiram. Os policiais prenderam um terceiro indivíduo no banco de trás. Ele ficou imóvel. Foi feito o flagrante pelo crime de roubo. Quando o advogado peticionou depois de um mês, pois “Ele pegou uma carona com os conhecidos do bairro e disseram que o posto possuía câmeras de segurança com imagens nítidas; elas provariam a inocência do réu”. Requisitei as imagens imediatamente, mas a resposta é que foram deletadas.

Importante destacar que essa ideia me persegue há muito tempo, há aproximadamente três anos, quando trabalhei no fórum criminal da Barra Funda, em São Paulo. Nos dois casos acima descritos – de forma bem resumida – o requerimento de diligência pelo preso poderia trazer a verdade aos autos. 

Quero registrar, por fim, que é minha intenção alcançar o maior número de pessoas, em especial os operadores do direito. Por esse motivo me esforcei para não utilizar termos técnicos, jurídicos. A clareza, quando se depara com algo novo, é fundamental.

Observações:

É claro que o requerimento dessa “primeira prova” pelo preso não pode ser obrigatório, sob pena de violação do direito ao silêncio.

Utilizei o termo “prova” por acreditar que é mais didático. Talvez fosse melhor a expressão: “direito à evidência”, ou “direito ao requerimento de diligência”.

A polícia não pode ser obrigada a “produzir” a prova requerida pelo preso, ou a “cumprir” a diligência que ele desejar. A presidência do feito permanece com o Estado. Nessa esteira, a obrigação é registrar o requerimento. Se indeferir, a autoridade policial registrará os motivos.

Nesse caminho, acrescentei a possibilidade de o autuado renovar o seu pedido ao Juiz de Direito que presidir a audiência de custódia.

É aceitável que a falta de termo registrando se o autuado requereu ou não a produção de prova seja causadora de nulidade; por falta de formalidade. Mas a falta de produção não pode ser motivo para nulidade (depois se analisará com as demais provas), sob pena de entregar ao preso “o poder” de causar nulidade propositadamente.

*André Norcia tem trinta anos de experiência na área criminal, é Juiz de Direito há dez anos, formado pela PUC/SP, mas antes disso foi também escrivão e delegado por quase duas décadas no interior de São Paulo. É escritor e assina a ficção “Delegado Rodrigo”, sobre os bastidores da Polícia Civil. Mais informações no Instagram @andrenorcia

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.