Dívida pública norte-americana no centro da engrenagem financeira global
Dívida dos EUA sustenta o sistema financeiro global, mas expõe fragilidade imperial e ameaça a estabilidade mundial
A dívida pública dos Estados Unidos pode ser considerada o eixo do sistema financeiro global contemporâneo. Os títulos do Tesouro dos EUA (US Treasuries) funcionam simultaneamente como o principal ativo global e a referência de preços para praticamente tudo que tem fluxo de caixa, além de serem a reserva internacional preferida pelos bancos centrais. Esse fenômeno coloca a dívida norte-americana no centro da engrenagem que move liquidez, preços e risco nas finanças mundiais.
Esses títulos são considerados o ativo livre de risco em dólares por excelência: têm alta liquidez, padrão jurídico claro e baixíssimo risco de crédito soberano. Nas crises, a maioria dos investidores corre para esses papéis, que exercem o papel de “porto seguro” diante da aversão ao risco. Em mercados de financiamento de curtíssimo prazo, os títulos do Tesouro americano são o ativo fornecido em garantia, para assegurar obrigações financeiras, com maior aceitação no mundo. Os títulos do Tesouro norte-americano servem também como âncora e referência para taxas em dólares. A taxa de juros dos títulos do Tesouro dos EUA com prazo de 10 anos é a principal referência usada globalmente para calcular quanto valem hoje os fluxos de caixa futuros em dólares. Quando essa taxa sobe ou desce, muda o “desconto” aplicado aos fluxos de caixa — e, por consequência, altera o preço de quase tudo.
Uma parcela enorme dos fluxos de caixa globais é avaliada direta ou indiretamente em dólares, o que fornece aos EUA grande poder, inclusive de retaliação. A Venezuela, por exemplo, sofre mais de mil sanções contra sua economia, o que leva a um profundo impacto no seu desenvolvimento nacional. As sanções de caráter financeiro estão entre as que mais prejudicam o país, como as proibições impostas ao governo da Venezuela e à PDVSA (Petróleos de Venezuela, S.A., empresa estatal de petróleo e gás) de emitir novos títulos de dívida, realizar certas reestruturações ou distribuir dividendos. Com essas restrições, o país fica sem condições de rolar a dívida soberana e sem acesso a mercados de crédito, com perda total da capacidade de se financiar externamente. O setor privado também é impactado, porque os chamados riscos soberanos (probabilidade de um país não cumprir seus compromissos financeiros) encarecem o crédito para as empresas locais, que igualmente perdem acesso a linhas comerciais.
Os títulos do Tesouro norte-americano também são os preferidos pelos bancos centrais para acumular reservas, em função da liquidez e da facilidade de custódia e liquidação. Ou seja, no processo de compra e venda, esses títulos são de fácil manuseio, pois a demanda oficial pelo ativo estabiliza o mercado. Ademais, nenhum outro mercado no mundo tem a escala e a infraestrutura oferecida por esses papéis. O mercado do euro é grande, mas com risco soberano elevado, além de o “Bund” — títulos públicos alemães considerados de baixíssimo risco dentro da zona do euro — não ter a mesma escala dos papéis americanos. Os países da união monetária não emitem a moeda que usam. Um governo da zona do euro não controla isoladamente a sua política monetária nem “imprime” euros. Isso torna o risco de insolvência e liquidez uma preocupação real em momentos de crise financeira, especialmente no atual período de grande crise econômica da Europa.
Apesar de a economia japonesa ser a quarta do mundo, o iene/JGBs (títulos do governo do Japão) não têm a profundidade e a estabilidade do equivalente americano. O ouro, por sua vez, funciona como reserva de valor, porém tem rendimento baixo ou nulo. Além disso, não tem elasticidade de oferta e possui logística/custódia mais onerosa e complexa. O RMB (Renminbi, nome oficial da moeda da China), por outro lado, tem menor convertibilidade e infraestrutura jurídica/financeira mais limitada, sem alcance global, por enquanto. Em suma, a combinação de escala + liquidez + convertibilidade + infraestrutura institucional ainda mantém os títulos do Tesouro dos EUA no topo da preferência.
A dívida — tida como impagável — e o déficit orçamentário dos EUA levam o Tesouro a emitir títulos que são absorvidos pelo mundo todo. Esse “cassino” financia a dívida americana e garante um ativo ainda considerado seguro. Obviamente, a instabilidade financeira mundial e o crescimento avassalador da dívida americana tornam esse jogo arriscado. Por essa razão (e outras, de caráter geopolítico), a China vem diminuindo gradativamente sua exposição a títulos do Tesouro dos EUA: a posição chinesa nesses papéis recuou de um máximo de US$ 1 trilhão em 2013–2014 para cerca de US$ 756,3 bilhões em agosto de 2025. O objetivo dessa política é a diversificação das reservas e a redução da dependência do dólar, com a realocação parcial para ouro, outras moedas e, em menor grau, ativos não americanos. A diversificação busca reduzir a vulnerabilidade a sanções e a dependência da infraestrutura financeira estadunidense.
A China, ao descartar títulos do Tesouro norte-americano, procura controlar também o risco geopolítico existente na dependência exagerada desse tipo de reserva — especialmente se for de um país que vem elevando o tom das hostilidades há anos. Pequim também observa o que ocorre com outros países catalogados pelo imperialismo como inimigos. A partir do início da guerra na Ucrânia, os países ocidentais congelaram uma grande quantidade de ativos russos, incluindo reservas do Banco Central e títulos soberanos sob custódia ocidental (calculados em US$ 300 bilhões). Ademais, imobilizaram ativos de bancos, empresas estatais e indivíduos russos, passando inclusive a usar rendimentos associados a esses ativos. A diversificação reduz a fragilidade da economia chinesa a medidas inesperadas e agressivas no campo comercial e tecnológico, que já vêm sendo colocadas em marcha pelo menos desde o governo de Barack Obama. A China também tem usado a conversão de parte das reservas em liquidez para melhorar ainda mais o desempenho da sua economia.
A redução chinesa em títulos do Tesouro dos EUA, parte de uma estratégia de diversificação e gestão de riscos, está sendo operada gradualmente, o que torna o processo administrável, na medida em que outros compradores adquirem os papéis disponibilizados. O risco de uma venda súbita e coincidente com outros choques (como um déficit do governo dos EUA mais alto que o previsto) não interessa ao próprio governo chinês, que é grande detentor desses papéis.
A base de detentores dos papéis da dívida dos EUA é ampla: investidores domésticos (bancos, gestoras, fundos de pensão, seguradoras), o Federal Reserve e investidores estrangeiros.
O estoque atual da dívida, de US$ 36 trilhões, e os cerca de US$ 3,3 bilhões/dia em juros implicam, como no Brasil, na redução da capacidade do Estado sustentar outras despesas, como infraestrutura, ciência e saúde. A financeirização do orçamento afeta diretamente, inclusive, a estratégia imperialista dos EUA, que é muito assentada em sua capacidade bélica. Em 2024, os juros se aproximaram bastante dos gastos com defesa. Projeções oficiais apontam que, a partir de 2025, os juros tendem a superar de forma mais evidente os gastos militares.
A aproximação ou ultrapassagem dos gastos com a dívida em relação aos gastos com a guerra mostra a magnitude do fenômeno da financeirização nas economias de todo o mundo. Os EUA são o país que promovem e patrocinam guerras no planeta, seja por objetivos econômicos imediatos, seja em função de necessidades geopolíticas e militares. Mesmo assim, nos últimos anos, a aceleração dos juros e os gastos com a dívida cresceram mais rapidamente do que os gastos militares.
O efeito da dívida pública sobre o governo norte-americano tem similaridades com o que acontece em países atrasados, apesar do poderio político, econômico e militar dos EUA. Gastos maiores com juros reduzem a margem para o exercício de despesas discricionárias, incluindo defesa e investimentos em geral, sem elevar impostos ou aumentar o déficit.
O governo brasileiro sofre duras críticas quando apresenta um déficit orçamentário (primário, ou seja, sem os gastos com juros) de 0,36% do PIB, como em 2024. No entanto, o déficit primário dos EUA no ano fiscal de 2024 foi de aproximadamente US$ 700 bilhões, 2,4% do PIB. Ou seja, quase sete vezes superior ao do Brasil (imaginem o Brasil com um déficit primário nesse nível). Nos EUA, como acontece no Brasil, entra governo, sai governo e, independentemente da posição política, ninguém resolve o problema da dívida pública. Com a diferença de que, no caso dos EUA, por se tratar do país mais imperialista do mundo e dono da máquina de imprimir dólares, ninguém cobra superávits primários nas contas públicas.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

