Do asilo ao escárnio: a perseguição política de Jorge Glas e a deriva autoritária de Daniel Noboa no Equador
Artigo escrito em co-autoria com Carol Proner
Larissa Ramina e Carol Proner* - A recente transferência do ex-vice-presidente equatoriano Jorge Glas para uma prisão de segurança máxima junto aos 300 presos considerados “mais violentos” do país e a publicação irônica e zombeteira do presidente Daniel Noboa sobre o episódio, revelam o aprofundamento da degradação do Estado de Direito no Equador e o avanço de práticas autoritárias típicas de regimes que instrumentalizam o sistema de justiça para a perseguição política. Glas não é um detento perigoso, sua inclusão nesse grupo e a exposição pública de sua condição configuram não apenas uma humilhação política, mas também uma violação flagrante do direito internacional dos direitos humanos.
Desde a invasão da Embaixada do México em Quito em abril de 2024, quando forças de segurança, sob ordens diretas do governo de Noboa, sequestraram Glas, o Equador tem demonstrado desprezo sistemático pelos pilares do direito internacional. A violação do artigo 22 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 1961 — que consagra a inviolabilidade das missões diplomáticas — representou um dos atos mais graves contra a ordem jurídica internacional na história recente da América Latina. A reação da comunidade internacional foi contundente: quase todos os Estados condenaram o ataque, reconhecendo que Noboa destruiu um dos fundamentos da convivência pacífica entre as nações.
A humilhação pública de Glas por meio das redes sociais agrava o quadro. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em decisão de 2000 no Caso Cantoral-Benavides vs. Peru, proibiu expressamente a exibição pública de prisioneiros por considerá-la um “tratamento cruel, desumano e degradante”. Ao ironizar a situação de Glas e exibir seu sofrimento, Noboa viola diretamente essa jurisprudência, adotando práticas incompatíveis com o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos do qual o Equador é parte. Trata-se de um gesto de sadismo político que, além de revelar desprezo pela dignidade humana, serve como instrumento de intimidação contra opositores.
O caso de Jorge Glas é paradigmático do fenômeno do lawfare na América Latina: o uso do direito e das instituições judiciais como armas políticas para neutralizar lideranças progressistas e reconfigurar o campo político em favor de interesses oligárquicos e externos. Assim como Lula no Brasil ou Cristina Kirchner na Argentina, Glas foi alvo de processos marcados por parcialidade judicial, ausência de garantias e manipulação midiática. Sua perseguição visa apagar o legado de políticas soberanas e redistributivas dos governos de Rafael Correa, e reafirmar a submissão do Equador às agendas econômicas e geopolíticas dos EUA.
O contexto carcerário em que se insere essa violência é igualmente alarmante. O massacre ocorrido recentemente em uma prisão equatoriana, com dezenas de mortos, demonstra o colapso completo do sistema penitenciário e a instrumentalização da violência estatal como forma de controle social. Ao transferir Glas para uma penitenciária dominada por facções e marcada por sucessivos massacres, Noboa expõe deliberadamente o ex-vice-presidente a risco de vida — o que pode configurar tentativa indireta de execução política sob aparência de legalidade.
O Equador deixou de ser um Estado democrático de Direito. A ruptura da legalidade internacional, a submissão do Judiciário ao Executivo, o desprezo pelas decisões da Corte Interamericana e a institucionalização do escárnio como ferramenta de governo revelam um Estado capturado pela lógica do autoritarismo neoliberal. Noboa governa por meio da violência simbólica e física, convertendo a humilhação pública e a repressão política em espetáculo. A figura de Jorge Glas, hoje, encarna não apenas a vítima de uma perseguição política, mas o símbolo do colapso do direito e da ética republicana em um país que, sob Noboa, cedeu definitivamente ao autoritarismo travestido de moralidade.
*Advogadas, doutoras em direito internacional, Professoras da UFPR e UFRJ, integrantes da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e do Conselho Latinoamericano de Justiça e Democracia – CLAJUD.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




