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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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Do Pretório Romano ao STF: O que é a Verdade?

No plenário do STF ou no pretório romano, a cena repete-se: advogados tramam entortar o que está retilíneo, governadores de séculos passados lavam as mãos

Fachada do palácio do Supremo Tribunal Federal (STF) (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom)

O Supremo Tribunal Federal viveu, nesta quarta-feira (3 de setembro de 2025), um dia que deveria ter sido marcado pela densidade do debate jurídico. Cinco ministros da Corte, o procurador-geral da República e milhões de brasileiros pela televisão acompanharam as sustentações de quatro réus da trama golpista.

Jair Bolsonaro, representado por Celso Vilardi, reduziu sua defesa a um mantra já gasto: “não há uma única prova contra o meu cliente”. E, como argumento central, alegou cerceamento de defesa por suposta falta de tempo para examinar os autos. Ironia amarga: ainda que Vilardi & Associados dispusesse de uma década para se debruçar sobre os relatórios da Polícia Federal e do Ministério Público, a fragilidade do discurso permaneceria a mesma.

O general Augusto Heleno teve em Matheus Milanez a voz que proclamou seu distanciamento absoluto de qualquer conspiração. Inclusive declarou que seu cliente estava, vamos dizer, desprestigiado com ou então presidente. O advogado pintou a cena como se o ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional fosse um distraído figurante de seu tempo, alheio às maquinações que corriam à sua volta.

Já o general Paulo Sérgio Nogueira foi defendido por Andrew Fernandes, que o apresentou como um pedagogo da legalidade, quase um anjo tutelar, alguém que teria tentado dissuadir Bolsonaro de aventuras golpistas. Isso mesmo: o advogado deixou subentendido que seu cliente tentou o tempo todo remover o presidente Bolsonaro de dar um golpe no país. Como se não tivesse ouvido bem, então professor a ministra Cármen Lúcia pediu que ele repetisse isso. E ele o fez.  “Está mais do que provado que o general Paulo Sérgio é inocente”, declarou, repetindo a frase como se a insistência pudesse substituir a análise dos autos. 

Que defesa, hein?

Walter Braga Netto, por sua vez, teve a defesa conduzida por José Luis Mendes de Oliveira Lima. Um cavalheiro do século XIX, faltaram o monóculo, a cartola e a casaca E o que se viu foi um enredo pobre, reduzindo toda a acusação à figura de Mauro Cid, classificado como autor de uma “delação premiada mentirosa”. Ignorou documentos, áudios, prints, vídeos, relatórios. Ignorou o que não cabia no atalho. Parecia preocupado em chegar ao século XXI.

Em comum, todos pediram absolvição plena. Nenhum advogado selecionou pontos frágeis da denúncia. Nenhum construiu uma linha técnica minimamente consistente. Preferiram gastar minutos preciosos reclamando do tempo para leitura de documentos, do volume das provas e da forma do processo. Transformaram a tribuna em espaço de lamúrias burocráticas. 

A impressão final foi devastadora: bancas renomadas, com dezenas de profissionais, desperdiçando a oportunidade para discutir não a mensagem da acusação, mas o envelope — sua cor, sua caligrafia, seu selo. O denominador comum foi a fuga da essência. As defesas não enfrentaram a verdade dos autos, preferiram a retórica do desvio. Nesse contraste, a liturgia da Corte manteve-se inteira; quem falhou foi a advocacia.

É nesse ponto que a ponte se abre naturalmente. O espetáculo da negação — os réus que recusam fatos, os advogados que recitam desculpas formais — ecoa uma cena que atravessa vinte séculos. A recusa em lidar com a verdade nua, a tentativa de esvaziar o mérito, a fuga para justificativas paralelas: tudo isso já estava encenado na sala do pretório romano, quando um governador cético perguntou a um prisioneiro sereno: “O que é a verdade?”

Na penumbra do tribunal de Pilatos, o drama foi outro, mas a lógica é a mesma. “Tu és rei?”, perguntou o governador. Jesus respondeu com simplicidade inquebrantável: “Eu nasci para isso e vim ao mundo para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz.”

Pilatos, moldado pela retórica imperial e pelo ceticismo helênico, não esperou resposta. Não se deteve no peso das palavras. Lavou as mãos, saiu para a multidão e deixou o silêncio como sentença. Seu gesto de indiferença ecoa até hoje: a autoridade que prefere não decidir, o poder que evita o confronto com a verdade, o juiz que abandona a substância.

O silêncio de Jesus não é evasão; é a resposta mais radical. A verdade não se enquadra em silogismos aristotélicos nem se protege em labirintos retóricos. Ela se revela na vida, na coerência, no sofrimento que não se curva. Desde então, a humanidade segue órfã de uma definição simples — e talvez seja esse o ponto: a verdade não se define, vive-se.

Ao longo dos séculos, a pergunta de Pilatos atravessou a História. Na Idade Média, tribunais eclesiásticos queimaram hereges que ousaram desafiar dogmas. Na Renascença, Copérnico e Galileu enfrentaram processos por exporem realidades cósmicas que desmentiam certezas terrenas. No século XX, regimes totalitários moldaram narrativas oficiais, transformando mentiras em doutrinas, enquanto a verdade sobrevivia em confissões clandestinas e diários escondidos.

Nietzsche, em O Anticristo, enxergou na pergunta de Pilatos um lampejo de lucidez romana, uma recusa a aceitar verdades absolutas. Para ele, a força estava no poder terreno, não na metafísica. Dostoiévski, em Os Irmãos Karamazov, recriou a cena no capítulo “O Grande Inquisidor”: o silêncio de Jesus diante da acusação de hipocrisia institucional. Para o escritor russo, o silêncio era convite à liberdade humana, espelho da alma dividida entre a busca sincera e a tentação do cinismo.

Hoje, no Brasil, a tecnologia garante memória ao real. Câmeras de alta definição captam cada gesto. Algoritmos reconstroem padrões de áudio e vídeo. Bancos de dados preservam mensagens que resistem à exclusão. Relatórios forenses e metadados desmontam narrativas fabricadas.

Não há mais como soterrar a verdade: ela emerge nos vídeos das manifestações, nos áudios de conspirações, nas minutas apreendidas, nos prints de conversas, nos testemunhos colhidos pela Polícia Federal. A avalanche de provas se impõe como fornalha. E, diante dela, a estratégia das defesas de ontem — discutir prazos, formatos, volumes — soa como encenação infantil, como malabarismo para não tocar no essencial.

O truque é antigo, mas não resiste ao peso do tempo. A pergunta de Pilatos reaparece em toda sala de audiência: o que é a verdade?

Talvez seja aquilo que resiste quando o espetáculo termina. Talvez seja o que não precisa elevar a voz para existir. Talvez seja o que sobra quando o poder se desfaz.

E nós, como sociedade, seguimos nessa busca. No silêncio de Jesus, há uma lição que resiste: a verdade não se oferece de bandeja, é conquistada com vigilância. Ela se manifesta nos gestos honestos de cidadãos que denunciam, nos juízes que julgam com coragem, nas lutas que atravessam gerações. 

O silêncio de Cristo, ontem como hoje, nos convida a vivê-la com coragem inabalável — sobretudo quando a democracia está em jogo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.