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“Dois dias, uma noite”: retrato da crise social dos nossos tempos

O filme retrata com bastante clareza as implicações negativas da vida determinada pela força do capital: o individualismo exacerbado, a competição prevalecente no seio da própria classe trabalhadora

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Bons filmes costumam abordar grandes temas com sutileza. É o caso da película franco-belgo-italiana "Dois dias, uma noite", estrelada por Marion Cotillard, que explora, com rara clareza, as vicissitudes do mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo.

A trama se desenrola a partir da demissão da operária Sandra (interpretada por Cotillard). Após um período de licença médica, devido a um quadro depressivo, os gerentes da empresa alegam ter percebido que não mais precisavam da trabalhadora. A empresa propõe aos empregados uma escolha terrível: a demissão da colega de trabalho ou um bônus salarial no valor de mil euros. A submissão dos/as trabalhadores/as ao regime de horas extras compensaria a ausência de Sandra.

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A decisão é delegada aos/às próprios/as operários/as, sob a máscara de uma escolha pretensamente democrática. Inicialmente aqueles/as optam pelo bônus. Estimulada pelo marido (o personagem Manu, interpretado por Fabrizio Rongione) e pela colega de trabalho, Juliette (encenada por Catherine Salée), Sandra tenta reverter a decisão dos colegas. Ela visita cada um/a dos/as operários/as, que poderiam fazer uma nova votação em poucos dias.

A partir daí, vemos um desfile de situações a que são submetidos os/as trabalhadores/as, presos nas determinações do capital. Sandra vai batendo de porta em porta e encontra colegas envolvidos em difíceis situações: uns têm mais de um emprego, outro está há mais de um ano sem pagar as contas de gás e luz, uma terceira está comprometida com obras intermináveis em casa e na antessala da separação de um marido que a oprimia.

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Pessoas sufocadas pelo custo de vida, pela escassez de direitos coletivos – derivada da retração do Estado de bem-estar social –, pela exploração do capital e também pelo machismo.

Se o filme é uma aberta crítica ao capitalismo, ele não poupa os/as trabalhadores/as. A inércia e a falta de solidariedade de classe estão presentes. Com isso, o individualismo também. A crueldade da encruzilhada entre a solidariedade de classe, no seio dos/as trabalhadores/as, e o individualismo possessivo e apassivador, suscitado pelas estreitas margens criadas pelo capital, chama bastante a atenção.

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Nesse sentido, uma das cenas mais chocantes é a de um filho que bate no pai. Enquanto o pai declara apoio ao retorno de Sandra ao trabalho, o filho não abre mão do bônus. O jovem, após agir com violência contra o próprio pai, sai cantando os pneus de seu possante carro.

Em seus traços gerais, o filme guarda acentuadas relações com a antiga e consistente denúncia de Marx sobre a inversão de valores morais gestada pelo capitalismo. A desumanização proporcionada pela centralidade do dinheiro na vida individual e coletiva – um ethos que submete a todo e qualquer outro critério de ação e escolha – figura como significativo drama na narrativa. Uma colega pode ficar sem meios de subsistência, o filho agride ao pai, a faculdade exige o pagamento de mensalidades para um jovem aluno: o dinheiro está acima de tudo.

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O filme retrata com bastante clareza as implicações negativas da vida determinada pela força do capital: o individualismo exacerbado, a competição prevalecente no seio da própria classe trabalhadora. Entre diferentes personagens predomina um nítido mal-estar. Crises de consciência, suscitadas pela escolha entre a preservação do emprego de uma colega de trabalho e um adicional remuneratório.

Com limitadas margens de escolha disponíveis aos/às trabalhadores/as, a película serve, também, de espelho para criticar a hipocrisia de sociedades europeias muito ciosas em proclamar a superioridade dos seus regimes democráticos e das suas liberdades. Assim, a única coisa que não transparece na tela é o democrático e libertário empoderamento de sujeitos com liberdade de escolhas.

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Isso porque as escolhas disponíveis aos indivíduos, sob a condição assalariada, são tímidas. Uma desumanizante e alienante vida social, que estabelece a valorização do dinheiro enquanto referencial da ação, só pode mesmo constranger as liberdades e corroer a tessitura da sociedade.

Uma série de condicionamentos sociais e externos às decisões dos indivíduos – em elevada medida, condicionamentos assentados no modus vivendi da sociedade que produz mercadoria e sacraliza o dinheiro – perpassa a narrativa. Não deixa de suscitar uma sufocante sensação de mal-estar.

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Com tudo isso, enquanto nas cenas iniciais "Dois dias, uma noite" nos revela uma personagem aprisionada na solidão e na dependência dos antidepressivos, a luta pela volta ao trabalho faz com que a personagem Sandra vá, paulatinamente, se reconciliando consigo mesma e ganhando energia e vida. Outros personagens, igualmente, tendem a refletir sobre os problemas que giram em torno do caso da colega e procuram reencontrar outros valores para as suas vidas, que não o dinheiro.

Em meio à representação de tantos e opressivos condicionamentos à ação dos sujeitos, o filme oferece uma bela e humanizante mensagem: a saúde das pessoas, sobretudo dos/as trabalhadores/as assalariados/as submetidos/as a um quadro social marcadamente espoliativo, só pode ser (re)conquistada por meio do enfrentamento à lógica capitalista do dinheiro. De modo a superar os grandes limites impostos por uma sociedade doentia, a vida só pode ser tocada de maneira saudável por intermédio da busca pela liberdade e a solidariedade coletiva. A dignidade e a autoestima não podem ter preço.

Com coautoria de Denise Felipe Ribeiro, doutoranda em História (UFF) e professora da SME-Rio

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