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Tarso Genro

Advogado, político filiado ao Partido dos Trabalhadores, foi governador do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil

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Domenico de Masi (1938-2023)

Aqui fica registrada a grandeza de Domenico de Masi, falecido neste ano de redenção da ideia democrática no Brasil

Domenico De Masi (Foto: Ricardo Stuckert)
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(Publicado no site A Terra é Redonda)

Faleceu neste 9 de setembro Domenico De Masi, aos 85 anos. Queria-o como a um irmão intelectual mais velho – sempre presente e sempre distante – que recordo com carinho e com a alegria de tê-lo conhecido e recebido seu afeto e até – quem sabe – merecido dele uma certa admiração. Logo depois de ter encerrado meu primeiro mandato como prefeito de Porto Alegre fui convidado, se não me falha a lembrança, pelo prefeito Walter Veltroni, de Roma, para fazer uma palestra sobre a nossa experiência de governo, particularmente sobre a invenção local do Orçamento Participativo.

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Quando encerrei minha fala visualizei ao fundo uma pessoa que não reconheci à distância, que me acenava: era Domenico. Fui rapidamente até o fundo do Auditório no Campidoglio, onde era realizado o evento, e lá estava ele com a sua simpatia e simplicidade. Meio assustado perguntei “o quê, Domenico, estás fazendo aqui?” Me respondeu com uma voz baixa e conspirativa – irônica e irreverente – “é que a maioria dos políticos aqui na Itália me aborrecem e você não me aborrece”. Imaginem meu orgulho!

Recordo aqui uma correspondência datada de 4 de fevereiro de 1995 remetida por ele, quando eu ainda era prefeito de Porto de Porto Alegre. Governávamos, então, uma das mais importantes experiências mundiais de gestão pública local, aqui conhecida como Orçamento Participativo, construído por muitas mãos e muitas cabeças pensantes, que unidas em torno do ideal democrático que elegeu Olívio Dutra nosso prefeito (eu era seu vice) tornou a nossa capital uma cidade mundialmente famosa e respeitada.

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Tal experiência era combatida ou ignorada pela grande imprensa, detestada pelos grandes empresários locais e atacada pela direita política, porque colocava o Orçamento Público a serviço da maioria das camadas médias empobrecidas e – sobretudo – dos mais pobres da cidade, numa sociedade radicalmente desigual, que ainda persiste em nosso país e em toda a América Latina. As classes dominantes locais sempre procuraram em Porto Alegre – depois da eleição do Olívio Dutra – um gerente para seus interesses imobiliários, em especial, não um prefeito para todos da cidade. Encontraram e elegeram alguns, depois do ascenso da amoralidade fascista do bolsonarismo.

A carta de Domênico apontava a experiência do Orçamento Participativo como a mais importante “que existe” no mundo, no que refere à gestão pública democrática, e dizia que a sua estadia em Porto Alegre foi um dos períodos mais interessantes da sua vida. Mencionava, ainda, seu último livro, baseado na Conferência que aqui proferiu, informando-me ainda que lera meu último livro (Utopia possível) e que o estava recomendando aos seus alunos do Departamento de Sociologia da Universidade “La de Sapienza”, em Roma.

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Anos depois, em 27 de setembro de 2017, De Masi fez uma Conferência na Universidade de Caxias do Sul, que lhe concedera o título de doutor Honoris Causa. Antes, nas suas “andanças” pelo mundo – como ele dizia – em 5 de novembro de 2012 também ministrara a conferência de abertura do “Congresso de Administração”, no Rio, propondo a abertura de uma “era de justiça social” na sociedade democrática, pautada por uma nova estruturação no mundo do trabalho, fundada na reorganização do “tempo livre”, transformado em “ócio criativo.”

Quando foi anunciada sua morte, uma serenata de elogios vindos até de “neoliberais”, setores liberais e conservadores – da esquerda à centro-direita do espectro político – inundaram a nossa mídia. Alguns apenas tentavam pegar uma carona no seu prestígio, sem saber muito bem quem ele era, outros – certamente ligados aos setores empresariais – lembravam dele a partir de uma visão distorcida da sua obra que considerava o desemprego como inevitável, deixando de considerar que ele defendia – para combater a deserção social – que todos deveriam trabalhar menos para todos trabalharem, e que isso implicava num enorme processo de distribuição de renda como verdadeiro desafio civilizatório.

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Carente de sentido para patrocinar os sonhos de uma comunidade de liberdade e de autocontrole do cotidiano, principalmente pela rejeição do trabalho alienado, a política deveria ser recuperada – segundo De Masi – como instrumento de libertação e autoafirmação dos indivíduos alienados pela rotina da exploração fabril, cuja superação só se daria quando “a plenitude da atividade humana (é) alcançada somente e quando nela coincidem, se acumulam e se mesclam, o trabalho, o estudo e o jogo; isto é, quando nós trabalhamos, aprendemos e nos divertimos, tudo ao mesmo tempo”.

O ócio, tomado como tempo livre para a cultura, o afeto, a arte, a afirmação das potencialidades liberadas dos indivíduos, sem a estupidez do trabalho repetitivo e mal remunerado, seria mais do que um programa “de partido”, mas um programa de unidade civilizatória contra a barbárie do obsoletismo programado. Seria o fim dos esquemas de produção e consumo manipulados para gerar dependência do supérfluo, da ditadura do mercado das falsas necessidades e das exclusões reais: mercado sem regulação eficiente, que supõe a guerra entre os indivíduos para sobreviver e supõe a guerra entre as nações, para dominar territórios e riquezas.

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Domenico de Masi quando falava, lecionava ou escrevia seus livros, não estava destinando a sua proposta de reordenamento da sociedade e das formas de produção de riqueza, a um projeto socialista ou capitalista, mas dizia que a política desenvolvida em ambas as sociedades – tal qual foram postas até agora – não organizou as condições para proporcionar a felicidade e a superação da carência: as máquinas e as novas tecnologias acumuladas nos últimos 100 anos, não propiciaram, para ele, o uso racional e emocional do tempo livre – legado pelas novas tecnologias de produção – para os seres humanos se libertarem do “ócio dissipador e alienante”, aproveitado pelos ricos, e liberar da miséria indigna os cidadãos e cidadãs comuns do nosso tempo. Ou seja, numa linguagem de Martin Heidegger, o “progresso técnico” teria sido apropriado – já segundo visão de Karl Marx – pelos proprietários dos meios de produção.

Sempre li e apreciei as lições de Domênico a partir das minhas convicções socialistas e democráticas, que jamais terão condições de vingar sem que – de tempos em tempos – surjam cabeças como a dele e de outros tantos intelectuais como ele, Karl Marx, Boaventura de Sousa Santos, Antonio Gramsci, Manuel Castells, Marilena Chaui, István Mészaros, Roberto Lyra Filho, e tanto outros que sempre vão mais além dos clássicos e ousam pensar fora das cartilhas programadas que transitam no mercado das ideias.

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Entendo como a albanesa Lea Ypi, no final do seu belo livro autobiográfico “Livre”, que os “fracassos assumem formas distintas e, se não formos capazes de entendê-los, ficaremos para sempre divididos. Escrevi minha história – prossegue ela – para explicar, reconciliar e continuar a luta.” É o que sempre me inspiraram pensadores como estes, com as suas nuanças, diversidade de opiniões e grandezas. Aqui fica registrada a grandeza de Domenico de Masi, falecido neste ano de redenção da ideia democrática no Brasil.

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