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E como é que se escreve Demerson

Dom Quixote cansado, marquei de encontrá-lo às duas, para levá-lo ao Conselho Tutelar. Apesar dos mil afazeres, fui ao seu encontro. Duas e dez, duas e quinze, cadê o menino?

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Demerson. Emerson? Demerson. Damerson? Demerson. Ah, sim, Demerson (não sei se com dois S, ele mesmo não sabia escrever)

Era um menino de nove anos, desses quase invisíveis (ou visíveis meramente à noite), desses que fazem a gente botar a mão no bolso e fingir que não tem nada, apesar das pratinhas que abdicaríamos por troco de bala - e que pra ele seriam do maior valor do mundo, aliás, o troco e a bala - ou, quando muito, que em vez de fazer a gente botar a mão na consciência - pra ver que o problema se resolve muito além d'uma esmola... mas que a fome de hoje não pode esperar revolução algures pra ser saciada -, apenas nos suplica um dízimo social, pra dar o aval cidadão/cristão à cabeça no travesseiro.

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Como dizia o mestre bretão da Literatura, quando não há lugar pra chegar, qualquer lugar serve: foi assim que, de baldeação, escondido tal qual imigrante ilegal, ele veio parar em Maceió de súbito - em parte, como eu. Era de SP, família no Rio. Vivia apanhando, se recusa a procurar a família, não existe amor por lá, Criolo tava certo. Demerson, também criolo, pior que imigrante ilegal, é estrangeiro do mundo, não tem lugar a que pertença. Ainda que seja, em vez de doença, tão parte do corpo social quanto eu, com tanta fome quanto eu. Demerson não é expressão de outro mundo, mas da outra face do mundo que habito. Daí que, de tanto lugar pra me abordar, foi pedir logo aquele hambúrguer não lá tão saudável, não tão barato, não tão necessário. Somos do mesmo mundo, nosso desejo é compartilhado, caímos na mesma isca, justo que lhe pagasse o sanduíche. Contou mil coisas sobre os 'arengueiros' da rua, a família, como faz pra arrumar um lugar pra dormir, o quanto os abrigos não abrigam. Demerson tinha experiências da textura áspera da fase adulta, quem sabe até aquele olhar inicial fosse puro blefe pra conquistar as migalhas possíveis - e, se for, não será um justo revés? - mas até que me prove o contrário confio. Desconfiei, apenas, que não há infância. Até que eu visse o tomate do lado de fora do sanduíche, incapaz de seduzir qualquer fome que fosse. Demerson era uma criança, uma criança perdida.

Dom Quixote cansado, marquei de encontrá-lo às duas, para levá-lo ao Conselho Tutelar. Apesar dos mil afazeres, fui ao seu encontro. Duas e dez, duas e quinze, cadê o menino?

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Queria ir embora, morto de fome. Mas e a dele? Acostumado ao abandono (da Família, do Estado, da Escola), pareceu não acreditar na possibilidade de ser acolhido.

Talvez Demerson não saiba ver hora. Decerto, não possui um despertador. Mas quem precisa acordar não é ele. Afinal, pra quem sabe ler o traço da desumanização, os olhos não tardam a ver que Demerson se escreve com SS.

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