É o planeta que é raro
Chamamos de raras as terras que mineramos, mas ignoramos a verdadeira raridade: um planeta capaz de sustentar vida, beleza e consciência em delicado equilíbrio
Enquanto governos disputam minérios estratégicos para turbinar a economia verde, esquecemos o óbvio: vivemos sobre o recurso mais precioso e insubstituível de todos — um planeta habitável.
Chamamos de “terras raras” um conjunto de dezessete elementos químicos — neodímio, lantânio, térbio, disprósio e outros nomes que parecem vir de um livro de ficção científica — dos quais depende quase tudo que chamamos hoje de progresso. Eles estão nos motores de carros elétricos, nas turbinas eólicas, nas telas que hipnotizam nossos olhos, nos satélites que vigiam fronteiras, nas comunicações militares de longo alcance e até nos mísseis de precisão cirúrgica.
Esses minerais discretos são os alicerces da promessa energética do século XXI. São apresentados como a ponte para um planeta mais limpo. Mas há um detalhe inconveniente nessa narrativa salvadora: para chegar a essa “sustentabilidade”, abrimos crateras na crosta terrestre, devastamos bacias hidrográficas, geramos resíduos radioativos e deslocamos comunidades inteiras. A modernidade limpa nasce, quase sempre, de uma extração suja.
Essa disputa já está redesenhando a geopolítica. China, Estados Unidos, Austrália, Brasil, Vietnã e vários países africanos se movem como jogadores de xadrez experientes, mas o tabuleiro é subterrâneo. Não se trata apenas de mineração: trata-se de soberania tecnológica, de controle de cadeias produtivas, de definir quem dita o ritmo da transição energética e quem será condenado à obediência estratégica. Quem controla o minério controla o futuro — esse é o idioma real do nosso tempo.
Por trás desse jogo, mora uma contradição que chega a ser moralmente indecente. Chamamos esses elementos de raros, mas tratamos como descartável aquilo que os contém: a própria Terra. A pressa por terras raras expõe outra verdade que quase ninguém narra, porque ela irrita acionistas e governos: não existe “substituto de planeta”. Vidas humanas continuam sendo vidas humanas, não componentes trocáveis de um projeto industrial.
A Terra é, ela mesma, um bem estratégico de valor incalculável. E não estou falando de romantismo ambiental. Estou falando de física, química e estatística cósmica. A combinação de atmosfera respirável, temperatura moderada, presença líquida de água, biodiversidade autorregenerativa e ciclos bioquímicos que convertem luz em alimento é algo tão improvável que, até agora, só apareceu uma vez no universo observável: aqui.
Essa é a ironia cruel da nossa era. Enquanto mineramos metais que permitem construir satélites capazes de mapear exoplanetas a anos-luz de distância, destruímos o único planeta conhecido onde existe uma criança respirando enquanto dorme. A busca tecnológica pelo amanhã está sendo financiada pela incapacidade ética de cuidar do hoje.
É impossível discutir terras raras sem discutir esta pergunta: de que adianta vencer a corrida tecnológica se, ao cruzar a linha de chegada, não restar ar decente para respirar? Estamos transformando montanhas em pó para alimentar turbinas que prometem “energia limpa”, mas esquecemos que não há nada limpo em transformar um vale inteiro em rejeito tóxico. Esse é o ponto em que nossa retórica verde tropeça na lama.
Existe também um erro conceitual profundo na forma como fomos educados a pensar sobre riqueza. Valorizamos o disprósio na bolsa, mas não contabilizamos o preço de um rio vivo. Celebramos o neodímio porque ele garante torque, aceleração, magnetismo, mas ignoramos que nada em nossa economia humana sobrevive três minutos sem oxigênio, e nenhum mercado global produz oxigênio sob encomenda. O planeta oferece, e nós anotamos como se fosse infinito.
Há um detalhe incômodo que raramente entra no discurso oficial: cada nova jazida “estratégica” anunciada como solução econômica costuma significar, para quem vive sobre ela, poeira, contaminação, ruído, expulsão e promessa vazia de prosperidade. A linguagem é sempre a mesma — “progresso”, “empregos”, “soberania” — mas o cheiro é o mesmo desde o século XIX: o cheiro da terra aberta à força.
Aqui está o ponto decisivo: as terras raras revelam que nossa crise não é apenas ambiental. É civilizatória. Continuamos agindo como se a Terra fosse uma mina com rodapé de custo e não um organismo vivo do qual somos parte. Só que ela não é “recursos naturais”. Ela é condição de possibilidade. E condição de possibilidade só existe enquanto existe planeta.
No fundo, a pergunta que nos espreita é brutal e simples: vamos mesmo insistir em tratar um planeta raro como se fosse um insumo barato?
Porque, convenhamos, o milagre já aconteceu. Nós já estamos no único lugar conhecido onde a matéria aprendeu a pensar, onde a árvore conversa com o pulmão, onde o rio imita a artéria, onde uma floresta inteira respira como se fosse nosso corpo ampliado. O que falta agora não é tecnologia, nem mais metal estratégico. É lucidez.
E lucidez, hoje, é admitir o óbvio: não adianta disputar o controle das terras raras se perdermos a única raridade absoluta — a Terra.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
