É preciso amparar Renato Freitas
Uma destinação violenta ao sul do Equador
O escritor chileno, Roberto Bolaño, costumava falar, por meio de seus narradores, de uma violência fatal que acomete os nascidos ao sul do equador, mais precisamente, acomete os latino-americanos. Sempre recebi a sentença de Bolaño com um misto de reconhecimento e desconforto. O reconhecimento, naturalmente, decorre da constatação de que o escritor está certo, o desconforto, no entanto, vem das minhas indagações sobre o tipo de violência a que ele se refere. Bolaño falaria especificamente da violência decorrente dos golpes militares que varreram a parte centro-sul do continente? As referências à morte de Allende podem fazer crer que sim. O autor, contudo, por meio de sua poética, parece comunicar uma violência mais ampla, uma violência inescapável. Aqui, os sentimentos ambíguos a que me referi pareciam se aprofundar neles próprios: outra vez me sentia impelido a concordar com Bolaño, ainda outra, desconfortava-me por me perguntar se uma afirmação tão categórica não guardaria seu tanto de exagero.
Lembrei-me das minhas indagações sobre as sugestões de Bolaño no último final de semana: zapeando por minhas redes sociais, ouvi da boca do vereador curitibano, Renato Freitas, em um stories que peguei pelo meio, uma fala que me lançou em profunda perplexidade – “Hoje eu sou mais velho do que meu pai, sou mais velho do que o meu irmão mais velho.” Não sei dizer se o vereador falava por si, ou se dava voz a uma outra pessoa qualquer. Senti-me impelido a voltar e inteirar-me de tudo. Pensei em Bolaño. Pensei em Iñárritu. Decidi não fazê-lo. A afirmação de Renato Freitas, é claro, compreende uma afronta à lógica formal: não é possível ser mais velho que o pai, ou que o irmão que nasceu antes -, mas eu entendi que o vereador enunciava um sobrevivente; falava de um alvo da violência a que se destinam os latino-americanos pobres que, por ora, tem conseguido escapar ao seu destino: por isso já está mais velho que o pai, mais velho que o irmão que nasceu antes. Renato Freitas fala de alguém que perdeu o pai e o irmão cedo demais.
A fala do vereador desafia a razão? Talvez. O problema é que, ao sul do equador, o ceticismo pode ser conveniente. Por vezes esse mesmo ceticismo também pode nos proporcionar surpresas.
O (outro) recado do morro: não estamos em condições normais!
Um filho não pode ser mais velho que o pai. Pelo menos um filho tão jovem quanto Renato Freitas. A afirmação do vereador, de fato, pode desconcertar um espírito cético. Nossa noção dos fatos, contudo, costuma amparar-se em condições médias que me fazem pensar nas famigeradas CNTP (condições normais de temperatura e pressão) que balizaram os experimentos de nossas aulas práticas de química do tempo de escola, pelo menos para os jovens que tiveram acesso à escola e, mais que isso, uma escola que dispusesse de um professor de química, uma escola que dispusesse do luxo de uma aula prática de química, em um laboratório devidamente equipado. Estudamos os fenômenos da natureza sujeitos às condições normais de temperatura e pressão, mas a natureza costuma não dar bola para o que chamamos normal: sabemos que uma montanha não cai –, mas, no Brasil de 2022, caiu... Em 8 de janeiro do ano IV da república das motocas, uma montanha desabou sobre as cabeças de 10 pessoas, levando-as à morte em Capitólio, MG. Eu havia dito também que o ceticismo, ao sul do equador, também pode revelar uma face conveniente: talvez não estejamos dispostos a concordar com Renato Freitas! Um filho, sobrevivente da violência que vitimou precocemente o pai e o irmão mais velho, não pode ser mais velho do que ambos pela simples razão de que eles estão mortos. Não se podem comparar as idades de vivos e mortos. A afirmação de Renato Freitas é perturbadora, mas parece não conseguir se estender para além das raias da retórica. Os mortos se afirmam pela ausência. O filho, sobrevivente da violência fatal que acomete os pobres da América Latina, não poderá reconhecer na pele do rosto do pai a jovialidade que já começa a lhe faltar; não poderá olhar os cabelos do pai e dizer: “Olha, papai, eu já tenho mais cabelos brancos que você!...” -, pelo menos não poderá fazer isso em condições médias, em condições normais de temperatura e pressão.
Eu, meu pai e meu filho: a nossa face mais horrenda
É outro artista latino-americano quem atestará a amplitude da violência de que fala Bolaño e testemunhará em favor de Renato Freitas. Alejandro González Iñárritu batizou seu longa de 2010 com uma corruptela do adjetivo que designa a beleza em inglês: Biutiful. A corruptela, além disso, designa também a grafia do que seria uma transliteração latina da palavra. É uma sarcástica ironia: o filme de Iñáritu parece uma antologia das coisas mais horrendas que a mente do diretor foi capaz de reunir, com destaque para os seus costumeiros cadáveres – dotados de um realismo que parece ofender a indústria do entretenimento de Hollywood -, e para as cenas em que Uxbal, protagonista do filme, urina sangue em decorrência de um câncer. Em resumo, em Biutiful, tudo é feio. Muito, muito feio.
Há, talvez, uma exceção: a insólita cena de abertura do filme, incompreensível para o expectador até o final da narrativa. Na cena inicial, o protagonista, interpretado por Javier Bardem, caminha em um campo coberto de neve; por entre as árvores, divisa um jovem, de feições acentuadamente latinas. Os dois estabelecem um curioso e incompreensível jogo: trocam olhares furtivos; sorriem um para o outro, à distância; imitam os sons da natureza e estabelecem um diálogo insensato. A narrativa devolverá, então, o protagonista ao sórdido ambiente de seu cotidiano: precário, periférico -, à margem da dignidade e da lei.
Um elemento capital, contudo, passará despercebido, mesmo a alguns expectadores atentos, ainda no início do filme, justamente, talvez, por parecer um elemento de importância secundária: Uxbal será informado por seu irmão mais velho de um comunicado que houvera recebido da administração do cemitério -, a necrópole daria lugar ao empreendimento da construção de um novo shopping e havia, portanto, a necessidade de se exumar o corpo do pai, e é aí que Iñárritu reúne alguns detalhes desconhecidos da história para tramar uma imagem singular, uma imagem que desafia as condições médias, as condições normais da experiência humana e poderia muito bem dar lugar a um tratado filosófico. O pai, fugitivo da ditadura de Franco, houvera conseguido emigrar para os Estados Unidos, mas, vítima dos caprichos do destino, sucumbiu a uma pneumonia pouco tempo depois de chegar à América. Seus restos mortais, portanto, foram levados de volta à Espanha, mas, dadas as circunstâncias, dadas as condições da viagem de navio que o conduziria de volta, seu corpo havia sido embalsamado e disposto em um caixão lacrado para o sepultamento em seu país de origem. Dá-se, então, a cena, inimaginável, perturbadora: em uma sala do cemitério, Uxbal poderá ficar cara a cara com o pai, que nunca pudera conhecer -, pior que isso, poderá ver o pai, congelado no tempo, mas em presença, mais jovem do que ele próprio é. Precisamos rever a fala de Renato Freitas: o filme de Iñárritu a dispõe em uma perspectiva desconcertante.
É tempo de gritarem as pedras
Após a aprovação do relatório que pede a cassação do mandato do vereador Renato Freitas, sob a acusação de liderar a invasão a uma igreja em Curitiba, muitos de meus contatos mais próximos se manifestaram prontamente com a ideia de que defender o jovem vereador era uma questão capital para a democracia brasileira, ou, pelo menos, para a defesa do que sobrou dela. E meus contatos estão certos. As histórias que reuni aqui, ganham uma dimensão reveladora e outra vez a arte nos ajuda a compreender a aspereza do real. Bolaño tem mesmo razão: a América Latina se constitui sob o signo da violência -, e é uma violência generalizada, fatal: acomete a todos -, de um lado os que detém o chicote e as armas, do outro, os que recebem em sua carne maltratada o látego e as balas.
As imagens perturbadoras de Iñárritu, outra vez, parecem o espelho que nos dá o afastamento necessário para ver o brazil – minúsculo, subjugado – de Bolsonaro: tudo são coisas, tudo está à venda – somos o shopping dantesco onde tudo se vende: de bugigangas a corpos – shopping nefasto que se ergue sobre um cemitério que abriga nossas memórias e mesmo a matéria viva de que nos constituímos. No brazil de Bolsonaro somos obrigados a conviver com mortos: com eles falamos, olhamos em suas faces -, nelas reconhecemos os traços de nossos próprios rostos.A cena final de Biutiful, filme que parece se atualizar no horror do brazil das motos, revelará ainda um detalhe, aparentemente despretensioso. A fala que Uxbal ouvirá do pai, em seu delírio de morte, fora proferida, na verdade, pelo seu próprio filho, enquanto jantavam. Ouviu a voz do filhinho, pela boca do próprio pai.
Ocorre-me agora a imagem de Renato Freitas, diante do altar da Igreja do Rosário em Curitiba. É uma imagem mental, é claro: eu não conheço a igreja do Rosário. Sou levado a crer que, do alto, a turba se via contemplada por um crucificado. Lembro-me também da fala do próprio crucificado, como registrada no Evangelho de João, quando apresentou o evangelista a Maria como seu filho: “Mulher, eis aí teu filho.” – Ocorre-me ainda que, se o cristo pudesse falar no brazil de Bolsonaro, certamente reclamaria o acolhimento do vereador, nosso filho.
Talvez seja um luxo falar de esperança, oprimidos que estamos pelas paredes do shopping lúgubre de Bolsonaro. É menos que isso. Mas também é muito mais forte. Nosso ímpeto de resistir e viver nos faz querer o futuro, nos faz desejar os espaços em que não estaremos mais oprimidos pela face inescapável da morte. Cuidaremos de nossas memórias, não negaremos as nossas ausências. Queremos, contudo, ver a face de nossos pais e de nossos filhos bem vivos, ainda que tenhamos que divisá-las no rosto de pais e filhos de nossos irmãos. É preciso proteger os jovens de nossas periferias; é preciso acolher nossos pais e nossos filhos; é preciso amparar Renato Freitas.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

