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Roberto R. Martins

Autor de Liberdade para os Brasileiros – anistia ontem e hoje

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É preciso "revisar" ou reinterpetrar a lei de anistia?

"Me parece que não cabe “revisão” da lei de anistia parcial, mas reinterpretação", escreve Roberto R. Martins

Ex-deputado federal Rubens Paiva (Foto: Secretaria de Estado da Cultura/SP)

Em 1979 o governo militar sob a direção do general Figueiredo propôs, e ao fim outorgou uma lei de anistia parcial. Na Câmara, o substitutivo o MDB perdeu por 194 votos, contra 209. Já no Congresso, o destaque do arenista Djalma Marinho, que melhorava, embora incluísse uma mudança mais no conceito que na forma, perdeu apenas por quatro votos: 202 a 206!

Ora, os generais no poder tudo fizeram para garantir seus privilégios: embora considerassem a anistia indispensável, não a aceitavam, de maneira nenhuma ampla, geral e irrestrita, como se tornou a grande bandeira popular e democrática; e mais: não admitiam que nenhum militar ou policial criminoso pagasse por seus crimes, não importa de que tamanho fosse!

Há um outro aspecto ainda a considerar: os generais nunca aceitaram colocar explicitamente a sua reivindicação no papel. Achavam que seria óbvio e evidente – além de desmoralizante – concederem uma anistia para os outros e não beneficiarem seus generais e serviçais. O acordo entre os conservadores era óbvio, mas feito por traz: predominou, venceu, não mais havia o que discutir. E assim ficou por um bom tempo. Embora tenha havido alguns processos contra as torturas, a maioria deles se restringiu ao âmbito civil, sem encantoar os criminosos. Apesar de que a situação era diferente nos países vizinhos, como o Chile, a Argentina, o Uruguai. A situação no Brasil também mudou: houve a constituinte e a Constituição estabeleceu a anistia ampla, geral e irrestrita em suas Disposições Transitórias. E os desaparecidos e mesmo muitos dos oficialmente mortos, onde estavam seus cadáveres? E os torturadores assassinos, quando seriam julgados e punidos?

Quando publiquei a terceira edição de Liberdade para os brasileiros sob o novo título Anistia Ontem e Hoje (Brasiliense, 2016), acrescentei um amplo Posfácio onde tratei deste assunto. Mas não só, procurei também fazer uma interpretação da lei de anistia parcial dos generais. E procurei mostrar que os militares não tiveram coragem de colocar, explicitamente, a intensão de se “auto” anistiar. Deve-se notar que a maioria dos crimes cometidos pelos policiais e militares eram crimes comuns e não crimes políticos. Foram crimes bárbaros, brutais, desumanos, insanos; assassinatos com pancada até a morte; ocultação de cadáver, quando não queimado num formo de alguma empresa. Jogaram no mar? Ainda não temos prova disso no Brasil, embora em países vizinhos, sim. Aqui houve intensões por parte do brigadeiro Burnier, que o diga o herói nacional, capitão Sérgio Macaco.

Outros processos também foram abertos contra o Brasil, especialmente na Comissão de Direitos Humanos da OEA, que condenaram o país especialmente no caso do Araguaia, onde houve um grande número de assassinatos brutais. Nestes casos, em geral, os crimes são imprescritíveis e insuscetíveis de anistia. Portanto, a qualquer tempo podem ser julgados. Claro que a maioria dos criminosos já faleceu, mas a memória poderá ser apagada, e os direitos adquiridos ilegalmente pelos sucessores, eliminados.

No conjunto desse processo, houve uma enorme pá de cal em cima das pretensões democráticas da sociedade brasileira. Uma decisão do STF, paradoxalmente relatada pelo ex-preso político, Eros Grau, selou a interpretação militar da anistia parcial, transformando em lei a forma hibrida do acordo militar-conservador. Assim os torturadores assassinos e ocultadores de cadáveres ficaram eternamente isentos. Quem dera, pra eles...

Nos últimos meses, um tsunami político-cultural veio a tona sob o título “Ainda estou aqui”! E tem percorrido o mundo inteiro revolvendo as massas e agitando os antigos temas dos anos de chumbo. E por sua força de repercussão, um velho processo que já tinha sido arquivado indevidamente duas vezes pelo STF, voltou à baila, recebeu o parecer a favor do relator e outros votos a favor, já tendo, nesta altura em que escrevo, maioria para prosperar. É o processo que envolve o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva e leva ainda em seu bojo, Mario Alves de Souza Vieira e Helder José Gomes Goulart, todos os três assassinados na tortura pelo exército e cujos cadáveres desapareceram. Além disso, esse processo abrirá caminho para outros. Quem sabe poderemos ter, efetivamente, uma justiça de transição em nosso país?

Neste sentido me parece que não cabe “revisão” da lei de anistia parcial, mas reinterpretação. Os fatos são muitos: desde o que a fez uma lei capenga, aprovada por uma maioria inexpressiva e por um Congresso sem vontade própria, subordinado aos ditames militares. Além disso, pouco tempo depois, a constituinte soberana e cidadã, estabeleceu uma anistia ampla, geral e irrestrita, como as ruas queriam, como era a voz democrática e popular. E não bastasse isso, temos os organismos internacionais aos quais o Brasil é filiado e subordinado, os quais nos impõe não falar de anistia para crimes comuns. Todos os responsáveis pelos assassinatos, torturas e desaparecimentos de prisioneiros políticos, seja ele civil ou militar, de qualquer graduação, do comandante ao meganha torturador, vivo ou morto, portanto por si ou por seus descendentes, devem pagar pelos crimes cometidos. Tortura nunca mais não pode ser uma palavra em vão! É preciso que ela seja assimilada pelos brasileiros para que nunca mais aconteça!

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.