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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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E se foram os otomanos que deram forma ao mundo moderno?

Pensem em uma enorme charada histórica: como um pequeno principado situado às margens ocidentais daquilo que era chamado de Ásia Menor veio a se transformar em algo que bem poderia ser definido como o mais importante dos impérios do Islã?

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Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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Era uma vez, na Anatólia, em fins do século XIII, um dos muitos principados túrquicos formados na esteira da invasão mongol da década de 1240, que relegou ao passado os turcos seljuks e surgiu como o Emirado Otomano - que tomou o nome de seu fundador, Osman I. 

Em meados do século XV - à época do divisor de águas que foi a conquista de Constantinopla pelo Sultão Mehmet II - o império otomano, então em expansão constante, havia absorvido praticamente todos os emirados túrquicos vizinhos. 

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E em inícios do século XVI, o que surgiu foi um império multirreligioso e multiétnico que - pragmático e tolerante - reinou por quatro séculos sobre os Bálcãs, a Anatólia e o Sudoeste da Ásia.

Pensem em uma enorme charada histórica: como um pequeno principado situado às margens ocidentais daquilo que era chamado de Ásia Menor veio a se transformar em algo que bem poderia ser definido como o mais importante dos impérios do Islã? A chave para decifrar essa charada talvez seja dada pelo Sultão Selim I. 

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God's Shadow (A Sombra de Deus), que em sua edição original em inglês (Faber & Faber) leva o subtítulo The Ottoman Sultan Who Shaped the Modern World (O Sultão Otomano que Deu Forma ao Mundo Moderno), talvez revele que seu autor, Alan Mikhail, professor de História e diretor do Departamento de História de Yale, é singularmente qualificado para defender essa tese. 

Mehmet II, cuja incessante obsessão – e astúcia – extinguiu o Império Bizantino naquele fatal 29 de maio de 1453 (ele tinha apenas 21 anos de idade) era uma figura de escala sobre-humana para os povos do Mediterrâneo, dos Bálcãs e da Ásia Menor. Ele lançou uma ponte entre a Europa e a Ásia. Ele transformou Constantinopla, rebatizada de Istambul, na capital de seu vasto império. Ele governou sobre as Rotas da Seda do Mar Negro ao Mediterrâneo. O Fatih ("Conquistador") assumiu estatura mítica no Oriente e no Ocidente - e chegou a nomear a si mesmo de César, herdeiro dos imperadores bizantinos.

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Mehmet II conquistou os Bálcãs na década de 1460, acabou com as colônias de mercadores genoveses da Crimeia e impôs vassalagem ao Kanato Tártaro da Crimeia em 1478. Com isso, ele, na prática, transformou o Mar Negro em um virtual lago otomano. 

Mikhail ressalta, logo de partida, que o Império Otomano foi, por um tempo bastante longo, o estado mais poderoso sobre a Terra – comparado, por exemplo, à dinastia Ming, sem falar dos Safávidas: o maior império mediterrâneo desde a Roma Antiga e o mais "duradouro" da história do Islã. 

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O autor então propõe o ponto central da explosiva tese que ele irá a seguir desenvolver em detalhe: "Foi o monopólio otomano das rotas comerciais com o Oriente, somado a suas proezas militares  em terra e no mar, que empurraram a Espanha e Portugal para fora do Mediterrâneo, forçando mercadores e marinheiros desses reinos quatrocentistas  a se tornarem exploradores globais, arriscando-se em traiçoeiras viagens, cruzando oceanos e contornando continentes - tudo para evitar os otomanos". 

Não é de admirar que essa tese será extremamente impalatável ao Ocidente, hegemônico há pelo menos 150 anos e agora confrontado com um turbulento declínio. Mikhail se esforça ao máximo para mostrar que "da China ao México, o Império Otomano deu forma ao mundo de inícios do século XVI". 

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É óbvio que a competição ideológica, militar e econômica com os estados espanhol e italiano, e depois com a Rússia, a China e outros estados islâmicos era um grande vale-tudo. Mesmo assim, Mikhail se delicia em mostrar que  Colombo, Vasco da Gama, Montezuma, Lutero, Tamerlane – todos eles "calibravam suas ações e definiam sua própria existência em reação ao alcance e poderio da potência otomana". 

Uma superpotência geoeconômica 

É preciso muito colhão para que um historiador empregado por uma universidade americana de elite apresente uma narrativa que ele mesmo descreve como "revolucionária" sobre o papel do Islã e dos otomanos na formação não apenas do Velho, mas também do Novo Mundo. Mikhail tem plena consciência de que essa é uma "pílula amarga para muitos ocidentais". 

Sai de cena o Muçulmano como o Outro "terrorista". Sai de cena a "ascensão do Ocidente". Entram os Otomanos como uma potência civilizatória. Mikhail é peremptório: "Desde a Revolução Industrial e as assim-chamadas glórias do século XIX", fazer retroagir a primazia europeia até Colombo é um "absurdo histórico". O Império Otomano "inspirou medo ao mundo durante séculos antes de ganhar sua alcunha pejorativa de "o homem doente da Europa". 

O fato é que, apesar de todos os revezes que enfrentou, o Império Otomano - por mais de 600 anos de história - permaneceu como o Hegêmona do Oriente Médio e um dos estados mais importantes na Europa, África e Ásia até a Primeira Guerra Mundial. De 1453 até o século XIX, os otomanos postaram-se "no centro da política global, da economia e da guerra". 

Imaginem os exércitos otomanos dominando vastas regiões da Europa, da África e da Ásia; os principais corredores de comércio de  seda e de outras mercadorias; núcleos urbanos importantes ao longo do Mediterrâneo, do Mar Vermelho, do Mar Negro, do Mar Cáspio, do Golfo Pérsico e do Oceano Índico. Eles governavam Damasco, Istambul, Cairo, Jerusalém, Meca e Medina. Foi um longo caminho percorrido desde sua humilde origem como pastores de ovelhas em trilhas desoladas da Ásia Central. 

E então há o fodão supremo: o Sultão Selim.

Mikhail usa boa parte de sua narrativa preparando cuidadosamente a cena para a erupção do quintessencialmente maquiavélico Selim, mesmo antes de ele se tornar sultão, em 1512. Ainda em Trabzon, no Mar Negro, como governador de província, consolidando as forças imperiais a leste, já em 1492 Selim tinha plena consciência de que a aliança entre Istambul e Cairo condicionava o comércio europeu na região que os neocons dos Estados Unidos hoje chamam de o "Grande Oriente Médio". 

Os otomanos e os mamelucos - que Selim mais tarde, como sultão, iria destruir - controlavam todo o acesso ao Oriente a partir do Mediterrâneo. Esse fato geoeconômico, por si só, destrói a fábula da ascendência europeia durante a Renascença e a tão louvada "Era das Explorações". Quem controlava o mercado e o comércio eram os otomanos. 

Se alguém na Europa quisesse fazer comércio com a China e a Índia, seria necessário compor com o "minhas ordens ou a porta da rua" dos otomanos. Os venezianos tentaram e não funcionou. Colombo, de Gênova, saiu porta a fora". Nada delicia tanto a Mikhail quanto mostrar que as viagens de Colombo, de tantas maneiras, foram "uma resposta ao poder dos otomanos". Estes foram a força política que, mais que qualquer outra,  deu forma a Colombo e à sua geração". 

As coisas ficam positivamente heavy metal quando Colombo é retratado como um jihadi cristão, uma vez que ele usou o conceito de uma guerra civilizacional global entre a Cristandade e o Islã para defender sua causa de uma viagem atlântica". A Rainha Isabel acabou comprando a ideia.
E então foi tudo ladeira abaixo, de um modo literalmente sangrento, quando "o vocabulário da guerra com o Islã tornou-se a língua da conquista espanhola das Américas". O Ocidente, muito convenientemente, esquece que todos os povos indígenas foram obrigados (itálicos dele) a reconhecer que a Igreja Católica era o poder universal e que seus próprios sistemas de crenças eram absolutamente inferiores.

De Selim a Erdogan 

Maquiavel era superfã dos otomanos - a quem ele admirava e temia. Ele se impressionava particularmente com a perspicácia estratégica de Selim, que sempre conseguia vencer obstáculos praticamente insuperáveis. Maquiavel terminou O Príncipe exatamente no mesmo ano – 1513 – em que Selim eliminou seus meio-irmãos, para finalmente assegurar para si o sultanato, que ele havia conquistado em 1512.

Selim começou com um estrondo - com nada menos que um bloqueio econômico contra os safávidas, tornando ilegal a exportação da seda persa a partir do Império Otomano (foi assim que os iranianos alcançaram o Leste do Mediterrâneo e os lucrativos mercados europeus).

A vitória de Selim sobre os safávidas na Batalha de Chaldiran foi entretecida com um acontecimento da maior importância: a conquista do ultra-estratégico Hormuz pelos portugueses, em 1515. Essa foi a primeira possessão europeia no Golfo Pérsico. E que troféu! Os portugueses tinham agora o controle sobre todos os carregamentos que chegavam e saíam do Golfo Pérsico, contando também com um centro importante, que fazia ligação com suas novas colônias na costa oeste da Índia. 

Depois que a batalha entre cristãos e muçulmanos cruzou o Atlântico, a cena estava montada para o capítulo seguinte: otomanos e portugueses lutando pelo poder global no Oceano Índico. 

Selim ia de vento em popa. Primeiro ele tomou a Síria – incorporando as lendárias Damasco e Alepo. Depois ele esmagou os mamelucos - o que significava não apenas o Cairo mas também Jerusalém, Meca, Medina e até mesmo Yêmen, com seu acesso estratégico ao Oceano Índico e as infinitas possibilidades para o comércio otomano, começando com um monopólio sobre o comércio da seda. 

O Sultanato de Selim durou apenas oito anos, de 1512 a 1520 - com incessantes movimentações geopolíticas de escala tectônica. Lutero mergulhou a Cristandade em uma guerra civil religiosa. Os otomanos controlavam mais território ao redor do Mediterrâneo que qualquer outra potência. O impulso imperial europeu atingiu o Oceano Índico. E então surgiu o desafio teológico supremo apresentado pelo maximamente Outro: os nativos americanos, do sul e do norte. Era impossível que eles fossem parte da "criação de Deus". 

Ao morrer, em 1520, Selim – Sultão e também Califa - pensava que ser o governante do maior império do mundo era algo predeterminado. Ele, de fato, era "a sombra de Deus na Terra". 

Ao final do último capítulo do livro, American Selim, Mikhail, mais uma vez, enfrenta a pergunta mais candente: por que (itálicos dele) Colombo teve que cruzar o Atlântico. Resumindo: "Esperando uma aliança com o Grande Khan do Oriente, ele tinha como objetivo retomar Jerusalém e destruir o Islã. Em termos mais prosaicos, suas viagens prometiam uma manobra que espertamente contornasse os obstáculos representados pelos monopólios comerciais dos otomanos e dos mamelucos".

Depois de Colombo chegar às Américas, os europeus, como seria inevitável, filtraram suas experiências "através das lentes de suas guerras com os muçulmanos" e se lançaram a uma nova versão de suas antiquíssimas cruzadas, um novo tipo de jihad católica". E é por isso que o Islã continuaria a forjar a história tanto da Europa quanto do Novo Mundo, e também a relação entre ambas. 

Depois de tanto drama, Mikhail e os editores do livro ainda conseguem apresentar uma notável imagem na antepenúltima página: o Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, contemplando cerimoniosamente a tumba de Selim, em Istambul, em 2017, após vencer um referendo constitucional que ampliou enormemente seus poderes. 

Da mesma forma que Maquiavel, Erdogan é fascinado por Selim, mas ao contrário de Maquiavel, não tem medo dele. O que ele quer é emulá-lo. Que sonhos imperiais, agora belicizados, assomam na mente do Sultão neo-otomano?

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