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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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E se Jesus tivesse nascido em Gaza?

Do jugo romano sobre Belém antiga ao controle militar israelense em Gaza, a história revela como impérios repetem métodos de dominação

E se Jesus tivesse nascido em Gaza? (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)

Há mais de dois mil anos, Belém era uma vila pobre submetida ao jugo do Império Romano. Soldados vigiavam ruas estreitas, censos, impostos esmagavam famílias, e o medo organizava a vida cotidiana. Foi nesse cenário de dominação e penúria que um casal deslocado, Maria e José, percorreu portas fechadas até que uma manjedoura improvisada, entre animais, se tornasse abrigo. O nascimento celebrado pelo cristianismo não ocorreu no centro do poder, mas à margem dele. Não havia lugar para eles nas estalagens — havia controle, vigilância e exclusão.

A força dessa narrativa não reside apenas na dimensão religiosa, mas na sua perturbadora atualidade. 

O Natal nasce como denúncia silenciosa: a vida insistindo em existir quando a ordem estabelecida decide que não há espaço para os frágeis. O presépio é, antes de tudo, uma cena política. Ele expõe um sistema incapaz de acolher quem não produz, quem não “serve”, quem não se encaixa no fluxo normalizado do mundo.

Hoje, a cerca de 70 quilômetros dali, Gaza devolve essa imagem em chave trágica e contemporânea. Antes da guerra iniciada em outubro de 2023, o território abrigava cerca de 2,3 milhões de pessoas; desde então, estimativas apontam para uma população em torno de 2,1 milhões, não porque a vida tenha encolhido, mas porque foi interrompida, ferida, arrancada de seus lugares. Quase toda essa população foi deslocada ao menos uma vez, muitas vezes repetidamente, numa geografia onde a ideia de “lar” se tornou provisória, frágil, desmontável.

Quando se fala em Gaza, os números costumam falhar por excesso de hábito: viram estatística, painel, argumento. Mas eles carregam um peso moral incontornável. Indicam a escala de uma vida coletiva empurrada para fora de si. Hospitais atingidos, bairros reduzidos a escombros, famílias inteiras em deslocamentos sucessivos, crianças nascendo em tendas improvisadas, sem água potável, eletricidade ou medicamentos. Em vez de discutir apenas “zonas”, “alvos” e “operações”, a pergunta decisiva permanece intocada: onde está o lugar humano quando tudo o que deveria protegê-lo se converte em risco?

Belém, por sua vez, é hoje uma pequena cidade com cerca de 30 mil habitantes, inserida num Estado altamente militarizado, onde a presença constante de forças armadas e controles rígidos molda o cotidiano. O turismo definha, a economia local encolhe, e o Natal acontece em tom contido, quase sussurrado. A cidade onde nasceu o símbolo maior da esperança cristã celebra cercada por um mundo em convulsão.

É nesse ponto que o Natal deixa de ser rito e se torna pergunta moral. 

Não há coerência em celebrar a manjedoura enquanto se normaliza a morte de crianças como ruído inevitável do mundo. A espiritualidade, quando existe, não é fuga: é responsabilidade. É recusar a anestesia que transforma dor em abstração. É chamar as coisas pelo nome, não para inflamar ódios, mas para impedir que a linguagem seja cúmplice do apagamento.

E então a reflexão chega sem ornamento, como deve ser: e se Jesus tivesse nascido em Gaza nos últimos três anos? 

Teria sobrevivido aos bombardeios? Em que rua haveria abrigo? 

Em qual hospital haveria incubadora? 

Teria havido tempo para o nome antes da sirene? 

Essas perguntas não buscam efeito retórico; medem a distância entre a história que veneramos e o presente que aceitamos. Se o nascimento do Príncipe da Paz ocorreu entre portas fechadas e precariedade, o mínimo que se exige de nós é não transformar a precariedade alheia em paisagem distante, consumível, descartável.

Neste Natal, escolho estar atento e forte. Não confundo tolerância com conivência, nem silêncio com paz. Que a mesa seja simples, a palavra responsável e o gesto consequente. Que a esperança não seja ornamento, mas prática cotidiana. E que a alegria — se vier — nasça do compromisso com a vida inteira, indivisível e comum a todos, não somos todos “ondas de um mesmo mar, estrelas de um mesmo céu?”

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.