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Ricardo Queiroz Pinheiro

Bibliotecário e pesquisador, militante do livro e leitura, doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC)

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Economist aplaude o julgamento, mas dita a cartilha

'O populismo autoritário se alimenta da revolta contra a casta judicial e política, mas governa com a mesma cartilha de austeridade', escreve Ricardo Queiroz

Capa da revista The Economist (Foto: Reprodução)

A grande reportagem da Economist sobre o julgamento de Jair Bolsonaro foi recebida com entusiasmo em muitos círculos, inclusive entre setores progressistas brasileiros. A revista, afinal, descreveu o processo como prova de maturidade institucional, colocando o Brasil como exemplo mundial de resistência ao populismo autoritário. Houve quem a lesse como reconhecimento externo de que a democracia brasileira é sólida, capaz de corrigir seus desvios internos sem ceder ao caos. Essa repercussão positiva não surpreende: o peso simbólico de uma publicação anglo-saxônica elogiando nossas instituições têm sempre algo de sedutor. Mas convém examinar o que exatamente se celebra quando a Economist bate palmas.

O enredo da reportagem é claro: de um lado, o liberalismo institucional fiscalista, encarnado no Supremo e no Congresso; de outro, o populismo autoritário de Bolsonaro, que tentou manter-se no poder à força. A narrativa organiza-se como duelo: instituições versus líder autoritário. Só que a chave econômica do texto revela outra coisa: ambos os polos orbitam em torno do mesmo núcleo neoliberal. A democracia liberal, apresentada como guardiã da ordem, aparece de mãos dadas com a austeridade, a defesa do mercado e o corte de direitos sociais. E Bolsonaro, ainda que tenha ameaçado desmontar a arquitetura política, sempre foi fiel ao receituário ultraliberal de Paulo Guedes.

O entusiasmo de setores progressistas diante dessa leitura talvez resida na necessidade de ver derrotado o autoritarismo. E, nesse ponto, a Economist ajuda: reforça a ideia de que Bolsonaro foi perigoso e precisa responder pelos seus atos. Fala o óbvio do ponto de vista legal e é mais enfático que seus clones brasileiros. Mas o aplauso cala os detalhes. A reportagem omite — e esse silêncio é tão eloquente quanto as palavras — a desigualdade escandalosa que assola a sociedade brasileira, a evasão fiscal criminosa que corrói o Estado, e os subsídios e proteções travestidos de legalidade que sustentam setores inteiros da economia. Ao reduzir tudo a uma disputa entre instituições racionais e populismo autoritário irracional, a análise desloca o foco: o problema vira apenas Bolsonaro, e não a estrutura e a miséria que o gerou.

E há mais. A revista insiste no diagnóstico clássico: o orçamento está engessado, o funcionalismo custa caro, os gastos sociais são excessivos. Essa ladainha, já tão repetida, virou trilha sonora global da análise econômica. Mas ao tratar saúde, educação e previdência como entraves, a Economist retira de cena a função social do Estado e transforma-o em mera máquina de ajuste. Fica de fora a verdadeira distorção: a assimetria fiscal que permite que os muito ricos quase não paguem impostos enquanto os mais pobres carregam, proporcionalmente, a carga tributária mais pesada. O Brasil emerge, assim, não como uma sociedade dilacerada pela desigualdade, mas como laboratório de reformas regressivas, embaladas no discurso da racionalidade.

O contraste com a realidade é gritante. Ironia do destino, na mesma semana em que a Economist exalta a maturidade de nossas instituições, a Operação Carbono Oculto desmonta a aura de respeitabilidade da Faria Lima ao revelar suas ligações com o PCC. Não é metáfora não: investigações mostram que bancos de fachada, fundos e corretoras serviam como canais para lavar dinheiro do crime organizado, tratados com o mesmo verniz técnico que qualquer ativo financeiro legítimo. A coincidência temporal é quase didática: enquanto Londres aplaude Brasília por levar um ex-presidente a julgamento, as forças de segurança brasileiras expõem que o coração financeiro do país também funciona como caixa registradora do narcotráfico.

Esse choque de narrativas ilumina algo essencial. O Brasil que a Economist pinta como laboratório democrático não é o mesmo que emerge das operações policiais. No papel, temos instituições que julgam ex-presidentes e resistem ao autoritarismo. No subterrâneo, há um sistema financeiro articulado com facções criminosas, atravessando de forma perturbadora as fronteiras entre legalidade e ilegalidade. A célebre “mão invisível” do mercado aparece, assim, não como metáfora de autorregulação, mas como mão suja, cúmplice na simbiose entre crime e capital.

Esse descompasso evidencia como o liberalismo institucional, tal como apresentado, é apenas um lado da mesma moeda. O populismo autoritário se alimenta da revolta contra a “casta judicial e política”, mas governa com a mesma cartilha de austeridade. Por sua vez, o institucionalismo fiscalista se apresenta como baluarte contra o caos, mas reforça os privilégios que perpetuam a crise social. A polarização, vendida como absoluta, não passa de encenação: são duas faces de um mesmo projeto neoliberal.

Ao se deixar seduzir pelo elogio da Economist, parte da esquerda corre o risco de aceitar essa moldura preguiçosa. Mas o que está em jogo não se resume ao julgamento de Bolsonaro. Trata-se da manutenção de um pacto: democracia tolerada enquanto respeitar os limites que o capital impõe. O populismo autoritário cumpre a função de bode expiatório que legitima a austeridade, enquanto o liberalismo institucional, ao combatê-lo, recebe carta branca para perpetuar os ajustes. E não se iludam: o mesmo autoritarismo, que não hesito em chamar de fascismo, será convocado de novo, assim que as circunstâncias exigirem.

Para mim, o que interessa nessa reportagem não é a lição que a revista quer nos dar, mas o que ela revela sem querer: o Brasil aparece como um país dividido, mas na prática orbitando em torno do mesmo eixo econômico. A disputa ocorre na forma de governação — toga ou arroubo autoritário —, mas jamais interroga o conteúdo substantivo do modelo. É uma guerra intraneoliberal travada no palco institucional e nas ruas, mas que nunca ameaça os alicerces do poder financeiro.

Isso não anula a importância de Bolsonaro responder por seus crimes. Ele e toda a súcia golpista devem ser punidos. Mas nos lembra que punir o protagonista não basta. Precisamos mirar os subterrâneos: a evasão fiscal, os subsídios privilegiados, as desigualdades, os vínculos entre elites financeiras e crime organizado. O Brasil não amadurece apenas quando leva um ex-presidente à justiça. Amadurece quando ousa enfrentar os próprios abismos que esse processo escancara.

A Economist, e seus entusiastas locais, pode se dar por satisfeita com o espetáculo institucional que pintou. Mas, no fundo, ela só reafirma — como quem dá aula de lição de casa já pronta — o padrão de liberalismo ortodoxo que deverá orientar o país no pós-crise Bolsonaro. Eu fico por aqui, e vejo esse texto como um sintoma: de que o campo da disputa não está entre democracia liberal e o fascismo, mas no que eles deliberadamente deixam de tocar — o modelo econômico que ambos servem.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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