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Roberto Bueno

Professor universitário, doutor em Filosofia do Direito (UFPR) e mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC)

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Eduardo Galeano e Florestan Fernandes: América Latina contra o império (II)

"É posto o desafio de caçar pobres, mas não combater a pobreza, de eliminar a consequência do sistema, mas não a este, nem sequer as suas fraturas expostas que sangram cotidianamente nas calçadas, ruas e principais avenidas. Este é o fato que causa a “incômoda” consequência para a sensibilidade da elite", escreve o professor de Direito Roberto Bueno

Florestan Fernandes e Eduardo Galeano (Foto: Reprodução)
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Eduardo Galeano (1940-2015) e Florestan Fernandes (1920-1995) analisaram o processo de destruição do Estado nacional configurado nas novas formas históricas das antigas colônias. Esta é a estrutura e ponto angular para a perpetuação da expropriação de riquezas, perpetuando a dependência já alertada por Florestan no alvorecer da década de 1980 quanto destacava a condição de domínio neocolonial ou de dependência de desenvolvimento capitalista sob a qual permaneciam diversos países da região tais como México, a Argentina, o Brasil, o Uruguai e o Chile. 

A fina literatura de Galeano observa o mundo ao seu redor e à história para concluir que a derrota latino-americana sempre foi acompanhada pelo triunfo alheio, que a prosperidade das grandes potências de cada época encontrou reflexo econômico no sangramento latino. Para Galeano a riqueza dos povos que serviria para alimentar os nativos foi expropriada, tornando-se perdição o que seria instrumento para sua redenção material. Este o histórico paradoxo da riqueza criadora da pobreza dos povos ricos e a riqueza de povos pobres, sendo esta estranha equação explicada nada mais do que pela posse e disposição destes últimos para o emprego da força física e das armas. A descrição precisa anteceder a ação, que dada a escassez de recursos, reclama ser certeira.  

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A Venezuela é exemplo clássico de país latino-americano que enfrentou historicamente a maldição da riqueza como vetor para a submersão do povo na pobreza. A Venezuela tem de lidar com a riqueza petrolífera que sob o controle da elite não viabilizava retorno em serviços e bem-estar para a população, pois o controle das grandes petroleiras internacionais é total. O fenômeno foi descrito com precisão por Galeano em escala que pode ser universalizável no que tange a tantas outras riquezas do continente, referindo-se à realidade daquele país como alvo de “objetos do assalto e saque organizados, [que] converteu-se em principal instrumento de sua servidão política e sua degradação social”. A este respeito Florestan chama a atenção para que o ocorrido na América Latina e, ademais, em escala universal, “foi que os estamentos dominantes e privilegiados preferiram optar pela linha mais fácil de seus interesses e vantagens, dando prioridade total às soluções econômicas montadas no período colonial, com todas as suas aberrações”. Também compartilhada por Galeano, esta visão de mundo da elite brasileira que pulsa nas linhas de Florestan tem linha de continuidade que remete ao período colonial. A elite que ocupa esta posição de dominância realmente priorizou ao longo da história a exclusividade dos benefícios econômicos e a exclusão social como indefectíveis marcas. 

O amplo conjunto de liberdades facilitadas ao mundo dos negócios é criticada por Galeano como cenário que desemboca na construção de mais cárceres para as vítimas deste crescente livre mercado. Isto pavimenta a via para a persecução e caça de pobres, da tentativa de retirá-los da vida pública e eliminá-los definitivamente do campo de visão, sendo o caso. Caçar pobres e miseráveis não é inovação, tal como podemos observar na história francesa, que em 1656 criava o Hospital Geral, cuja finalidade era prender e alimentar pobres, e que hoje, com as devidas matizações, é aplicada em sua íntegra no continente latino-americano com grau de sofisticação e crueldade superiores, pois já não se trata de alimentar aos necessitados. É posto o desafio de caçar pobres, mas não combater a pobreza, de eliminar a consequência do sistema, mas não a este, nem sequer as suas fraturas expostas que sangram cotidianamente nas calçadas, ruas e principais avenidas. Este é o fato que causa a “incômoda” consequência para a sensibilidade da elite, que se contentará tão somente em atacar o que perturba o seu campo visual e atiça a íntima culpa burguesa. 

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Aplacar o mal-estar é política pública, mas não dos que sofrem na carne as consequências deletérias da forma de organização e exploração do mercado de corpos que já foi um dia classificado como relação de trabalho, é isto o que foi suspenso. Aplacar o mal-estar hoje é introduzir recursos públicos recolhidos a partir da produção econômica de esforços brutais a que é exposta a massa de corpos humanos para, logo, recolhê-los das ruas, e a sua pobreza e miséria nelas exposta, para proteger os olhos dos responsáveis por sua produção. É paradoxal a consequência de esfolar o próprio corpo para com o resultado econômico disto sufragar os gastos do aparato coercitivo burguês estatal para que elimine a cruel miséria imposta aos indivíduos. A polícia sempre política serve para neutralizar e ocultar os corpos miserabilizados sem atacar os miseráveis organizadores.  

A legitimação do sistema capitalista crescentemente produtor de pobreza, miséria e exclusão carece da aplicação da polícia em sua raiz política, enraizada na defesa de sistema político e desconectando-se de sua função de Estado. Pautado por sua exigência de crescente exclusão e concentração de riquezas, Galeano reconhece que “A força do conjunto do sistema imperialista descansa na necessária desigualdade das partes que o formam, e esta desigualdade assume magnitudes cada vez mais dramáticas”, dramatismo radicalizado por seu alcance em escala continental dada o poder de imposição imperial cujo elenco de vítimas repete-se ao longo da história entre as populações originárias indígenas e os negros trazidos como escravos e mantidos em condição análoga no decorrer dos tempos sob a enganosa flâmula da formalização dos direitos dispostos por uma democracia burguesa inacabada, e este é processo tão duro que coloniza inclusive a mente, levando Galeano a admitir que os escravos terminam por olhar a si mesmos com os olhos do dono. 

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O processo de aumento da concentração de riquezas e violenta exclusão social caracteriza o sistema capitalista que precisa eliminar das ruas a consequência humana de sua lógica de funcionamento, e assim autoriza a polícia não apenas a evitar a visualização da miséria humana, mas também de intervir para eliminar fisicamente os pobres. Para Florestan é clara a interdição de novos rumos desde a lógica de operação do capitalismo, incapaz de oferecer opções para a América Latina, cujas nações “se encontram em situação neocolonial ou em situação de dependência”, e a evolução de sua forma de produção apenas abarrota as ruas de miséria. Habitadas pela pobreza e miséria, as ruas das sociedades capitalistas são bem descritas por Galeano como perigosas até mesmo para simples caminhadas, assim como a organização econômica de suas urbes transforma o meio ambiente inóspito até mesmo para o ato de respirar, agora uma façanha em mundo “ao contrário”. 

Neste mundo descrito por Galeano o medo impera e impede o sono, alguns por não ter as suas necessidades básicas cobertas, enquanto outros tampouco podem fazê-lo pelo temor imposto pelo risco iminente da perda da riqueza acumulada em excesso, realidade que aflige massa de indivíduos mesmo quando regiões como a América Latina disponham de sobrados recursos para alimentar a sua população. A política econômica capitalista que invade a cultura impõe à vida os graves paradoxos de sua lógica de produção, coordenando a exploração em grau máximo e impondo o sofrimento a suas vítimas. 

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O sistema de produção capitalista consolidou a pior expressão que o humano carrega em seu âmago, criou as condições ideais para a expressão da pior face da competitividade humana em versão radicalizada que despreza a sua própria natureza humana. Florestan reconhece nos atores centrais do capitalismo que operam as grandes corporações e instituições do Estado o único propósito de organizar e sacar o “butim, em associação com parceiros de várias categorias sociais de dentro e de fora”. Sobre estes poderosos condutores do sistema capitalista Galeano reputa tratar-se de gente que se conduz impunemente, ainda assim alvo de elogios e honrarias e recompensados pelo acúmulo de riquezas, embora a expensas de sofrimento humano, seja qual for a intensidade, inclusive de vidas humanas, sejam quantas forem elas, e disto há sobrados exemplos na organização das sociedades capitalistas ocidentais.  

A América Latina e o Caribe continuam a merecer o reconhecimento como região de veias abertas. Este é o continente que foi, intermitentemente, desde o seu “descobrimento” até esta quadra histórica, alvo da expropriação de riquezas que poderiam ter transformado as condições de vida de seus habitantes. Esta análise é compartilhada por Galeano e Florestan, que não acomodado à passividade remete para a consideração da dificuldade imposta para os países que pretenderam fugir a “[...] controles externos coloniais e semicoloniais ou que quisessem fugir a uma dependência econômica ruinosa teriam de lutar por sua autonomia de desenvolvimento capitalista”. Foram escassos os enfrentamentos armados com chances materiais de êxito, e a chave bélica, atualizada ou meramente potencial, é a única que o capital reconhece na vida concreta para limitar as suas pretensões genocidas. Florestan reconheceu o amassamento de tantas forças que articularam reações de baixo para cima em grau revolucionário, tendo sido pulverizadas sob o pretexto de “autodefesa da burguesia que lembram a autocracia e o despotismo”, estratégia de manutenção do poder que não sofre solução de continuidade, senão apenas de aparência na história. 

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As mostras da importância do desequilíbrio de forças para realizar o enfrentamento foram dadas com sobras na América Latina e no Caribe pelas potências europeias e pelo império norte-americano. Como recorda Galeano acerca do objetivo das criminosas incursões dos marines, enquanto o seu declarado e pouco persuasivo objetivo era apenas “restabelecer a ordem e a paz social”, em verdade, nada mais realizavam que a função de proteger ou restaurar as ditaduras de que carecia Washington, quer mantendo grau formal de compromisso com a democracia ou mesmo quando isto já não era possível. Neste caso o império em nenhum caso hesitou em apoiar regimes abertamente calçados na criação de cárceres políticos e práticas de tortura aniquiladoras dos fundamentos do Estado democrático de direito. Sempre foi tão válido quanto pouco apreciado na América Latina o brocardo Si vis pacem, para bellum, cabendo exceção para o caso da Venezuela chavista.  

Finalizava o século passado, e o ano era 1998, quando Galeano publicou o seu “Patas arriba” e lapidarmente afirmava, sem concessões estilísticas, o que não se lê nos melhores periódicos planetários sobre economia que aproveita a tão poucos e rasga os corpos da massa, a saber, que a economia mundial é, mesmo, a mais eficiente expressão do crime organizado. Este é sistema altamente disfuncional, e a sua racionalidade tão somente está articulada desde a perspectiva dos estrangeiros controladores do sistema de exploração econômica. Paralelamente, também aproveita às burguesias nacionais que fazem a corretagem das riquezas nacionais para o império a preço vil. A irracionalidade sistêmica é patente no que concerne aos resultados que se impõem a todos os demais, pois, “quanto mais se desenvolve, mais se tornam agudos seus desequilíbrios e tensões, suas fortes contradições”. 

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Todo o explícito exercício da arte de dominação e exercício industrial da crueldade contra a carne humana para obter em contrapartida o equivalente aurífero representou a aplicação da arte retórica planetária acerca das benesses do desenvolvimento econômico mesmo quando na prática implique o sufocamento de povos inteiros e o decorrente odor putrefato da morte que acompanha o bem-estar daqueles que se apropriam e recorrem aos estupefacientes para suportá-la em luxuosos gabinetes. Tem razão Galeano ao afirmar que os poderosos que conduzem as grandes corporações transnacionais, são os contumazes e mais ofensivos agressores da natureza e transgressores dos direitos humanos, e estes jamais conhecem a prisão, pois são eles próprios quem detêm a chave dela, e para além disto, parecem tê-la construído em tamanho significativamente menor do que o deles.  

Os fatos históricos são engendrados segundo a ordem do puro domínio da elite nacional articulada com as potências sob as vestes de legitimidade que os tribunais sempre estão prestes a conceder no caso de violação dos resultados da vontade popular apurada nas urnas. Está bastante claro que, malgrado o poderio do império norte-americano, tampouco há força ou razão histórica insuperável que opere em direção única e irresistível. Não há necessidade histórica de que as coisas sigam sempre orientadas do mesmo modo e ao mesmo rumo, perspectiva comum de realismo temperado presente nos trabalhos de Florestan e Galeano.  

Galeano sugere que a submissão não é liberdade neste mundo, senão que ela coincide com tão somente com a sua descrição deste mundo “ao contrário”. Há que evitá-la, e a rota de fuga consistirá em não recepcionar o teor das lições que ensinam a padecer a realidade em lugar de mudá-la, de aceitar piana e subordinadamente o futuro em vez de imaginá-lo e, passo seguinte, ousar, redesenhar o porvir, reorientá-lo, repropô-lo, reconfigurá-lo ao gosto popular e, assim, experimentar tempos em que as carnes já não sejam amassadas nem as esperanças trituradas, mas sim dias em que seja possível testar o alargamento de horizontes e a imaginação perceba o céu desanuviado habitado pela iminência de liberdades inauditas.  

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