Efeito espectador: O planeta em perigo, e nós na janela
Se a delegação alimenta a inação, o fatalismo a consolida. Transforma a passividade em resignação total
Diante de grandes crises - como, na atualidade, a climática -, agimos como testemunhas: esperamos que governos, empresas ou “o mundo” intervenham, enquanto a responsabilidade se dissolve no coletivo. O planeta arde e, parados na janela, esperamos o herói que nunca chega - sem perceber que somos justamente aqueles que aguardamos. É o “efeito espectador” em ação na esfera do aquecimento global.
Na madrugada de 13 de março de 1964, Catherine Susan “Kitty” Genovese, de 28 anos, retornava do trabalho para seu apartamento no bairro de Kew Gardens, em Queens, Nova York. Ao estacionar e caminhar em direção ao edifício, ela foi seguida por Winston Moseley, que a esfaqueou duas vezes nas costas. Moseley fugiu, mas voltou cerca de 10 minutos depois e atacou-a novamente - desta vez num corredor do edifício, onde ela buscara refúgio. Ele a esfaqueou mais vezes, a violentou sexualmente, roubou-lhe dinheiro e fugiu. Kitty foi encontrada pouco depois pela amiga Sophia Farrar, ainda viva, e morreu no trajeto para o hospital.
A imprensa - particularmente o artigo no The New York Times de 27 de março de 1964 - relatou que 38 pessoas, durante cerca de meia hora, teriam visto o ataque e ouvido os gritos desesperados e gritos de socorro da vítima, mas nenhuma chamou a polícia ou se dispôs a ajudar.
Esse relato chocou o país, e o episódio se tornou origem e símbolo do chamado “efeito espectador” (bystander effect) - a ideia de que, em situações de emergência, quanto mais pessoas estão presentes, menor a probabilidade de alguém agir individualmente.
Winston Moseley foi preso e condenado à pena de morte em 1964, mas a sentença foi revertida em 1967 para prisão perpétua.
O assassinato de Kitty Genovese tornou-se um marco na psicologia social e na discussão sobre responsabilidade coletiva. Ele ajudou a moldar o estudo de por que as pessoas não intervêm em emergências, sobretudo quando outras pessoas estão presentes. Também contribuiu para mudanças no sistema de emergência dos EUA, como o fortalecimento da linha de chamada de emergência universal (como o “911”) em parte motivada pela percepção de que as pessoas não sabiam ou hesitavam em acionar ajuda.
O caso, descrito em estudo pelos pesquisadores John Darley e Bibb Latané em 1968, tornou-se lendário e hoje é citado em manuais de psicologia social em todo o mundo: foi uma manifestação trágica de um mecanismo psicológico que hoje conhecemos como efeito espectador.
O efeito espectador na verdade se aplica a qualquer circunstância, inclusive na da postura de muitas pessoas em relação ao agravamento evidente da crise climática e demais problemas ambientais. Se nos determos um pouco para compreendermos esse efeito, não é difícil entender por que diante da mudança climática nos comportamos como testemunhas indiferentes.
Outros fatores amplificam o efeito espectador. Antes de tudo, o anonimato: sendo estranhos uns aos outros, falta o estímulo ao agir provocado pelo olhar julgador de quem nos conhece. Além disso, tendemos a pensar que apenas sujeitos muito mais poderosos - governos, multinacionais, instituições internacionais - sejam capazes de fazer diferença, e tacitamente lhes delegamos a responsabilidade. Resultado: cada indivíduo se coloca no papel de espectador passivo de um desastre coletivo, incapaz de reconhecer seu próprio potencial de mudança.
Se a delegação alimenta a inação, o fatalismo a consolida. Transforma a passividade em resignação total. Diante da enormidade do problema, rendemo-nos como se o destino já estivesse escrito e qualquer esforço fosse inútil. Ao contrário da ilusão otimista, que apenas gera falsa segurança e reduz a percepção de urgência, no fatalismo a iniciativa é inibida pelo sentimento de inutilidade. Ambos, ainda que por vias opostas, produzem o mesmo efeito: nada fazer, manter tudo como está.
O fatalismo está diretamente ligado ao fenômeno crescente da ecoansiedade: um estado de preocupação crônica, frequentemente acompanhado de angústia e impotência, ligado aos efeitos da crise climática. Afeta em particular os jovens, para os quais o futuro já parece comprometido. Esse estado emocional emerge quando o problema parece tão imenso que se torna insuperável e esmagador. Por isso, a exposição constante a imagens catastróficas e narrativas sombrias muitas vezes gera o efeito oposto ao desejado: em vez de estimular a ação, sobrecarrega as pessoas, levando-as a rejeitar o problema para autoproteção. A ecoansiedade, portanto, não é apenas reflexo de uma ameaça objetiva, mas resultado de uma comunicação climática que, com intenção de conscientizar, pode gerar paralisia.
Se a crise climática parece grande demais para nossas mãos, é porque aprendemos a olhar para ela como espectadores, não protagonistas. Mas a solução passa menos por heróis e mais por contagiar escolhas cotidianas. Há mais de meio século, o assassinato de Kitty Genovese tornou-se metáfora do pior da condição humana: dezenas de testemunhas, janelas acesas, ninguém faz nada. A responsabilidade se dilui no coletivo.
Hoje, esse mecanismo psicológico deixou o beco de Nova York e ganhou escala planetária. Queremos que “o sistema” intervenha. Somos 8 bilhões na face do planeta, mas agimos como se ninguém estivesse em casa.
E a paralisia climática tem camadas. Primeiro, delegamos. Depois, desistimos. O fatalismo climático - irmão sombrio do otimismo ingênuo - não nega o problema, apenas a possibilidade de solução. A ecoansiedade é seu sintoma mais corrosivo: jovens aterrorizados com um futuro que lhes parece irrecuperável.
Continuamos dependentes dos combustíveis fósseis não apenas por necessidade material, mas porque a normalidade exerce um fascínio moral: o que existe parece natural, o natural parece certo. Se todos fazem o mesmo, por que mudar?
Mas a mesma mente humana que paralisa também segue o fluxo. Somos criaturas imitativas. E esse traço, que alimenta a inação, pode ser reprogramado para o oposto: o contágio de comportamentos sustentáveis. Políticas inteligentes e micro-intervenções urbanas mostram isso. Um contêiner de lixo menor e um de reciclagem maior mudaram hábitos em Colorado. Informar que mais pessoas pediam refeições sem carne dobrou pedidos vegetarianos em Stanford. Painéis solares visíveis aumentam a probabilidade de novos painéis na vizinhança. Sustentabilidade não é só uma prática: é um sinal social.
A mensagem é simples e desconfortável: não mudamos o mundo porque está errado; mudamos quando achamos que o mundo já está mudando. E caberá a nós tornar esse movimento visível. Isso exige uma passagem cultural: da pergunta “por que ninguém faz nada?” para “o que posso fazer agora, junto com outros?” - e, mais importante, criar cenários em que fazer a coisa certa seja fácil, óbvio e socialmente aprovado.
Não precisamos de mártires ecológicos. Precisamos de vizinhos inspiradores, escolhas replicáveis, exemplos expostos. Não do herói que corre para a rua, mas de milhões que abrem a porta.
A crise ambiental é coletiva. A saída também.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




