Ei meu irmão, oi minha irmã, é hora, hora de acordar!
O sonho de consumo dos ricos e poderosos é ter uma boiada mansa e fácil de conduzir para o abatedouro, mas somos milhões e milhões e a gente não quer só comida, a gente quer vida digna, quer respeito, educação, oportunidades, igualdade de direitos
Hoje quero gritar para fora de mim! Você pode estar se perguntando se é mais um louco no mundo, como alguém poderia gritar para dentro? Pois é isso mesmo, eu e você fazemos isso todos os dias e quase não percebemos.
Quando estamos em nossas redes sociais, com dezenas de outras pessoas ou até milhares de seguidores, criamos um padrão: criticar ou excluir quem pensa diferente e nos retroalimentar com o apoio, aplausos e “likes” dos nossos pares, numa situação cada vez mais distantes do diálogo e próxima de um super monólogo. À medida que nossos monólogos se fortalecem com camadas de apoio dos iguais, nos sentimos mais fortes e crentes da verdade contida nessa opinião monotônica, inaugura-se ai a auto-verdade, que não precisa de fatos nem comprovações, só precisa do apoio de outros; do engrossamento desse caldo vem o fortalecimento da crença. Agora pode-se dizer o que quiser, tem uma multidão que apoia e rechaça críticas, isso encoraja e faz sentir bem.
Agora são milhões de seguidores, é chegada a hora de mandar uma mensagem na rede e receber a resposta da própria performance. Não importa o que dizem os outros, existe força para excluí-los, ridicularizá-los, demiti-los, “essa é a onda e ela não terá fim”, pensa o deslumbrado líder virtual. Como em Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll: a rainha tinha somente um modo de resolver todas as dificuldades, grandes ou pequenas. “cortem sua cabeça!” disse ela, sem mesmo olhar em volta. Concordar com a atitude da rainha parece estranho, mas muitos ajustam o próprio juízo às necessidades de proximidade com o poder, concordando com o autoritarismo e versões convenientes da verdade.
Talvez fique claro se imaginarmos um simples e fictício diálogo:
- Meu irmão acorde, você estava sonhando, não havia milhões de seguidores, a todo o tempo era só você, pois tudo o que não era igual você negou. Você não criou nada de novo, eram apenas ecos de dentro de si mesmo. Se um milhão de cegos disserem que a luz não existe, ainda assim estarão errados. A terra não é plana! Você está jogando fora a ciência e os fatos!
- Não estou dormindo, tenho os endereços dos meus milhões de seguidores! Como assim não é plana? Vou excluir você agora! Isso é fake News!
- Isso é a vida real e não pode me excluir, você não entendeu o algoritmo, são apenas espelhos e você foi Narciso demais para perceber. Quando você suspende a mão e diz “sim”, todos dizem “sim”, quando fica com raiva, outras caras raivosas parecem apoiá-lo. Quando você diz “não”, aparecem centenas de mãos refletidas dizendo o seu “não”. Seu mundo é pequeno e cabe com sobras dentro de você. Somos seres sociais e você se tornou um completo solitário!
- Eu não sou seu irmão, eu não sou de esquerda, nem comunista, nem roubei, só quero um mundo melhor!
- Olhe meus dedos, eles não são iguais, nem por isso eles deixaram de ser meus dedos. Somos diferentes, de fato bem diferentes, mas não deixamos de ser irmãos. Só estou pedindo para você sair da caverna e apreciar a lua cheia e redonda no céu, que amanheça comigo e veja a luz no horizonte que clareia a paisagem e apresenta o caminho.
- Você por acaso está me chamando de homem das cavernas? Eu não estou numa caverna, estou em meu apartamento confortável, assistindo notícias sobre o carnaval, conversando com meus milhares de amigos. Opa, essas panelas são minhas!
- Sim, vou continuar batendo nelas até você acordar! Eu também estava em minha caverna, ouvindo ecos da minha própria voz, apoiando versões da história que sempre estiveram em mim, contando histórias já conhecidas pelos meus pares, em um ciclo vicioso. Apenas estávamos ligados a canais diferentes, com programações diferentes, mas o algoritmo era parecido, baseado em redes sociais. O meu discurso evolucionista e científico também recebeu aplausos e likes, mas de nada isso adiantou, estava sempre falando para outros iguais a mim, como um clone de ideias, mas sem que isso chegasse até você. Isso tudo antes do ponto virada, ao sair da caverna tudo mudou, já não eram sombras, eu vi o mundo. Você se lembra dos planos que fazíamos de nossas vidas? faz tão pouco tempo!
- Lembro sim, mas agora estamos em lados opostos e você se tornou insuportável, falei!
- Venha até aqui, abra os olhos, olha, sou eu! Esses são meus filhos, esse é meu trabalho, esses continuam sendo meus sonhos, mas agora já não tenho muita confiança no futuro, nem sei se vou me aposentar.
- Nossa, você está ficando careca, há quanto tempo não nos vemos pessoalmente. Que lindos os seus filhos, como cresceram! Eu também tenho medo do futuro. A empresa que trabalho está passando por um processo de “desinvestimento”, fui transferido de cidade, meu salário também diminuiu e tive que aceitar o cargo que me ofereceram.
- Cara, que bom te ver! Que pena, sinto muito pelo seu emprego! Vem, vamos andar juntos e dar uma olhada no horizonte. O tempo passou, agora tudo é muito diferente, vamos ver o que conseguimos enxergar juntos. Veja a cidade de Mariana como ficou, veja agora Brumadinho, veja Belo Horizonte e São Paulo depois das últimas chuvas, veja como estão as queimadas. Você viu aquele cientista que foi demitido porque disse que as queimadas aumentaram? Você acha que a história deveria ter percorrido esse curso? Você acha que o clima não está mudando? Veja os nossos órgãos ambientais desmantelados, será que era isso mesmo que queríamos?
- Veja, eu não mudei de lado, mas realmente a história poderia ser diferente se tivéssemos maior cuidado com o ambiente, menos corrupção, mais infraestrutura, independência dos órgãos ambientais, mas você sabe bem sobre a corrupção e o aparelhamento do governo pela esquerda né?
- Vamos encontrar um consenso aqui, senão não sairemos da nossa zona de conforto, concordo com você: a corrupção é uma doença, precisamos de infraestrutura, precisamos cuidar das pessoas e do planeta. Está de acordo?
- Sim, claro!
- Agora vamos falar de áreas prioritárias. Para mim educação é prioridade! Aliás, seu filho passou no Enem?
- Sim, depois daquela confusão que teve nesse ano, ele finalmente passou na Federal, vai cursar Biologia, que é o sonho dele. Ele passou numa particular, mas ainda bem que passou também na pública porque eu acho que não conseguiria pagar e, além disso, ele se entusiasmou com pesquisa, ele já pensa no doutorado.
- Foi muito bom você ter mencionado isso, acredita que o governo diminuiu o orçamento das universidades e na véspera do natal mudou as regras de eleição para reitores? Você sabe que muitos cursos de pós-graduação estão fechando por falta de bolsas e que muitos pesquisadores brasileiros estão aceitando propostas de trabalho em outros países?
- Eu também trabalho numa empresa pública e fui chamado de parasita na semana passada. Também fiquei chocado com o ministro dizendo que até empregada doméstica estava indo para a Disney, minha mãe era doméstica, criou a gente e minha irmã foi a primeira a entrar numa universidade lá em casa, depois fui eu! A universidade mudou nossas vidas e minha filha já foi pra Disney, me senti o próprio exemplo do Ministro. Agora com o dólar nessas alturas, estou pensando em vender o carro para comprar a gasolina.
- Só me diz uma coisa, será que os banqueiros estão passando por esse mesmo “perrengue” que nós dois? Será que você está mais perto da minha realidade ou da realidade dessa elite? Todo assalariado que precisa trabalhar para viver é um pobre. Não há razão para essa divisão entre nós, isso só beneficia quem nos explora. Quanto mais isolados estivermos em nossos mundos mais facilmente seremos manipulados, mais teremos que nos sujeitar a opressão de quem manda nesse país há 500 anos.
Na verdade, não só a escravidão não acabou, como novas formas de escravidão foram criadas. Atualmente moramos em cavernas tecnológicas que nos apresentam a modernidade, mas não se iluda, o chicote do subemprego, da jornada de trabalho extenuante, da redução de direitos humanos, do isolamento entre pobres e ricos continua firme e forte, isso em um mundo que nasceu sem fronteiras para a humanidade e para qualquer ser vivo. Pergunte a um passarinho onde termina o Brasil e começa a Venezuela, ele não saberá. O pior é saber que é ele, com cabeça de passarinho que está certo!
Sim, todos somos chicoteados pela esquerda e pela direita de nossos corpos frágeis. A principal personagem mundial atual quer aplausos, quer um muro que separe os pobres, ao mesmo tempo que destrói a soberania de outros países. Ele quer um planeta mais quente, quer transformar mentiras em verdades absolutas, é salvo de um impeachment, não por estar correto em suas ações, mas por ter uma maioria de políticos que o apoia. É novamente o efeito da rainha de copas superando verdades e fatos.
Aqui a história não é diferente, o Governo foi pedir ao líder mundial da vez para colocar nosso País no grupo dos países ricos, abriu as nossas fronteiras aos cidadãos daquele país (sem aplicar o princípio da reciprocidade), ao mesmo tempo em que centenas de brasileiros são miseravelmente deportados daquele País, descendo dos aviões cobrindo seus rostos envergonhados, como se fossem os bandidos dessa história. Colocou um negro sem consciência negra para cuidar do instituto Palmares, coloca dois sucessivos e incompetentes ministros para tomar conta do ministério da Educação, coloca os banqueiros para cuidar da economia, institui a censura, nega o golpe militar da década de 1960, nega a tortura e seus mortos e homenageia torturadores e condecora milicianos, coloca militares por todos os postos de governo, cria escolas militares, previdência diferenciada para militares, aumento de salário para militares.
Sobre a verdade, o governo só se interessa se for a sua versão da verdade, para isso só dá entrevistas para os meios de comunicação subservientes ao poder ou à sua visão de mundo, enquanto dá uma “banana” a qualquer pergunta que achar impertinente (para as quais gostaríamos de ouvir respostas racionais). Diz ser contra a corrupção, mas muda completamente o órgão que investiga os crimes financeiros (antigo COAF), cuidando desse assunto tal qual raposas cuidam de galinhas, dificultando investigações, mudando o judiciário... Tudo isso é válido se a corrupção que vem de dentro de sua própria casa esteja protegida, ou seja, é contra a corrupção “dos outros”. A mudança de poder, dita democrática, se parece cada vez mais com a revolução dos bichos de George Orwell. Quando os porcos tomaram o poder havia apenas uma lei “todos os bichos são iguais”, até que os porcos, gostando muito do poder pelo poder, mudaram a constituição “todos os bichos são iguais, só que alguns são mais iguais que os outros”.
Na educação: um dos maiores desastres do governo, com a equipe de técnicos esvaziada, um ministro demitido e outro incompetente, que só permanece no cargo por seguir uma cartilha que aponta para a morte das Universidades Federais e da Ciência brasileira. O CNPq, que cuida do financiamento da pesquisa, jamais passou por tamanha crise orçamentária. Na Capes, que cuida da pós-graduação, colocaram um criacionista que ameaça o sistema brasileiro de Pós-Graduação (até então, respeitado mundialmente!). Além da medida provisória lançada na véspera do natal que possibilita ao governo escolher o reitor numa lista tríplice, independente do número de votos, e que permite ao reitor escolhido nomear (sem eleição) todos os cargos da Universidade (reitor biônico). E, por fim, um golpe orçamentário que pretende matar as universidades por absoluta falta de dinheiro para a sua manutenção, pagamento de funcionários e aposentados. Engana-se também quem pensa que todos os conhecedores dessa realidade estejam alinhados contra o governo... Infelizmente não falta quem imite os seguidores da rainha de copas que travestem de direita para se manterem no poder, ou mesmo os que se comportam como os porcos da revolução dos bichos que, pelo apego ao poder, tentam ajustar os estatutos das universidades para estender sua permanência e de todos os porquinhos.
Portanto, meu amigo, meu irmão, a fogueira foi acesa e todos nós fomos jogados dentro dela. Agora tenho duas opções, ver você queimando e ficar feliz com isso, enquanto ambos morremos assados como parasitas de porcos, ou a segunda opção, minha preferida: trabalharmos juntos.
O trabalho é árduo para restaurar o valor dos fatos, reconhecendo que a reforma trabalhista não nos beneficiou, que a reforma da previdência só nos empobreceu, que a reforma administrativa não nos representa. Nosso mundo real está cada vez pior, mas não podemos esquecer que nesse país o povo se organiza numa pirâmide das mais injustas do planeta, com uma imensa massa de trabalhadores, pobres e miseráveis na base e uma agulha no topo, que representa apenas um punhado de ricos, donos de quase tudo, até mesmo da fé de muitos de nós.
O sonho de consumo dos ricos e poderosos é ter uma boiada mansa e fácil de conduzir para o abatedouro, mas somos milhões e milhões e a gente não quer só comida, a gente quer vida digna, quer respeito, educação, oportunidades, igualdade de direitos, queremos empregadas domésticas indo para a Disney, ainda que tenhamos tantos lugares melhores no mundo, mas que elas tenham esse seu direito respeitado.
Finalmente, eu não preciso concordar com você, podemos falar de nossas tantas diferenças, é daí que nasce o diálogo, é do diálogo que nasce o conhecimento e o entendimento, é da justiça que nasce a igualdade e, disso tudo, nasce um mundo melhor. Não me importa se você é de esquerda, de direita ou de centro, precisamos estar juntos acordados e por dentro das decisões para construir um modelo democrático que permita eleger lideranças que mandem obedecendo a nossas necessidades de povo, mas para isso precisamos fugir dos espelhos e olhar para o mundo que queremos reconstruir ao nosso redor.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

