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Rodrigo de Oliveira Morais

Diplomata. Como jornalista, foi repórter do Jornal do Brasil e de O Estado de S. Paulo

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"Eles têm a convicção, a organização e a base de poder": como a embaixada dos EUA interpretou a vitória de Salvador Allende

"No telegrama em que avaliava a vitória de Allende, o embaixador dos EUA em Santiago ressaltou as duras condições vividas pelo Chile", relata Rodrigo Morais

Salvador Allende (Foto: REUTERS)

No telegrama confidencial de 5 de setembro de 1970 em que avaliava o significado da vitória de Salvador Allende na eleição presidencial ocorrida na véspera, o embaixador dos Estados Unidos em Santiago, Edward M. Korry, ressaltou as duras condições sociais e econômicas vividas pelo Chile. Com 60% da população na pobreza, e os níveis de inflação e de desemprego transformados em temas centrais do pleito, Korry considerava surpreendente Allende ter recebido apenas 36% dos votos.

O diplomata norte-americano reconhecia que, ao votar no candidato da frente de esquerda Unidade Popular, o eleitorado chileno demonstrava consciência e obstinação na defesa dos próprios interesses. “Os eleitores não são porcos gadarenos; numa sociedade com 90% de alfabetizados, eles podem ser irredutíveis sobre seus próprios interesses”, escreveu Korry. A metáfora suína remete, diretamente, ao episódio bíblico do Novo Testamento em que, ao receber sobre si “espíritos imundos”, uma vara de porcos se precipita ao mar e morre afogada. Admitia-se, portanto, que a alternativa a Allende seria um suicídio coletivo, rejeitado pela maioria da sociedade chilena, inclinada a uma solução revolucionária.

No despacho a Washington, o embaixador apresentou dez motivos pelos quais estaria convencido, para além de qualquer dúvida, de que o Chile, entre todas as nações “ocidentais e democráticas”, seria o único país a reunir condições objetivas para a “transição constitucional a um Estado comunista sem a violência costumeira”. Em primeiro lugar, afirmava, o programa revolucionário do Partido Socialista e do Partido Comunista do Chile seria o resultado de prolongada evolução no país. “Eles têm a convicção, a organização e a base de poder”, explicou. Além disso, recente reforma constitucional, que ampliara os já importantes poderes presidenciais, entraria em vigor no mandato de Allende.

A capacidade do presidente para nomear a cúpula militar seria um dos exemplos da força concedida pela lei ao mandatário. “O presidente não somente tem a maior influência na seleção dos chefes das forças armadas e dos carabineiros (polícia), mas, mais significativo, os oficiais selecionados aposentam automaticamente todos aqueles preteridos na lista de antiguidade. Nunca um instrumento mais suave foi concebido para a eliminação, por métodos legais e tradicionais, de uma grande parcela da oposição”, sentenciou.

Korry identificava na burocracia chilena uma mentalidade estatista, que encontraria eco na maioria do parlamento. Considerava a iniciativa privada do país dependente do governo. Sob Allende, acreditava, propostas de privatização de setores cruciais como o bancário não encontrariam obstáculos. A eliminação dos atores relevantes do mercado seria tarefa relativamente fácil e, como consequência, os setores políticos de direita sofreriam o mesmo destino. “À medida que este processo avance, destruirá o Partido Democrata Cristão com o mesmo método de comer pelas beiradas que os comunistas empregaram, nestes últimos seis anos, numa sociedade totalmente livre, para destruir aquele outro esteio do centro, o Partido Radical”, previa.

Economicamente, a despeito das dificuldades mencionadas, Korry via um Chile mais forte do que nunca. As reservas em dólar per capita eram superiores às dos Estados Unidos. Na produção de cobre, o país caminhava para ocupar a segunda posição mundial, superando a União Soviética, graças a massivos investimentos de empresas norte-americanas. Não lhe faltariam compradores entre os países da Europa Ocidental, além do Japão, ávidos por se aproveitarem de preços de ocasião. O governo Allende seria capaz, ainda, de conter o fluxo de divisas para o exterior na forma de lucros, amortizações e pagamentos de licenças e patentes. Ele alertava também para o risco de calote na dívida chilena de USD 750 milhões com agências estadunidenses como a USAID e o Ex-Im Bank. Por tudo isso, Allende estaria livre de maiores apertos econômicos por um tempo razoável.

Outro elemento na análise era a comunicação, ou o que Korry chamava de “imprensa livre”, representada pelo grupo El Mercurio, que apoiara o governo democrata-cristão de Eduardo Frei e se opusera ferrenhamente à esquerda nas eleições. “Estão condenados”, vaticinava, referindo-se também a toda uma gama de jornais menores que orbitavam em torno do veículo principal. O controle dos suprimentos de papel pelo governo, o direcionamento da publicidade governamental e o desaparecimento da iniciativa privada poriam fim ao sistema jornalístico alinhado aos interesses do capital. “A democracia depende, em última análise, da liberdade de expressão. Abafar a voz mais alta é silenciar a dissidência”, argumentava o embaixador, observando que dos três canais de tevê de Santiago, um seria “totalmente controlado pelos marxista-leninistas da Universidade do Chile”, outro por uma “combinação de democratas cristãos marxistas ou bem à esquerda” e o terceiro era estatal.

Finalmente, a própria condição geopolítica do Chile lhe permitiria uma transição pacífica e constitucional para o comunismo, indicava o embaixador. “O Chile é realmente uma ilha. Os seus três vizinhos têm problemas suficientes para se afastarem de quaisquer pressões sobre este país”, avaliou, referindo-se à Argentina, à Bolívia e ao Peru. “Não há país no mundo que esteja tão longe das duas superpotências e da China comunista. Não é a Polônia nem o México.” Diferentemente de Cuba, o Chile não drenaria recursos soviéticos, dando margem a Moscou para expandir sua influência com cautela, sem se expor a grandes riscos.

Num trecho do telegrama que permaneceu classificado pelo Departamento de Estado por mais tempo, Korry deixava claros os termos em que o governo norte-americano deveria encarar a ascensão democrática da esquerda no país sul-americano: “Faz algum tempo que convivemos com um cadáver e seu nome é Chile. A decomposição não é menos malcheirosa por causa da civilidade que a acompanha. Os chilenos poderiam, como sempre, falar interminavelmente na televisão e no rádio (...), como se nada tivesse mudado (...). Os chilenos gostam de morrer pacificamente e de boca aberta.”

Ao lamentar que seria os Estados Unidos quem teria de se mover mais rapidamente naquele contexto, o embaixador prometia reportar, no dia seguinte, medidas preparatórias para a nova era chilena. “A liderança depende, se posso usar o espanhol, de cabeza, corazon e cojones – cabeça, coração e culhões. No Chile, contavam com chachara – conversa fiada.”

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.